quarta-feira, 18 de outubro de 2017

OBVIAMENTE, DEMITO-ME. A carta da ex-ministra e a situação a que chegamos.


Sabemos, agora, quantos portugueses pagaram pela partidarização do aparelho de Estado, uma doença que nos tem vindo a corroer e que, infelizmente, é transversal: não é nem foi exclusivamente induzida pelo atual primeiro-ministro.

Logo a seguir à tragédia de Pedrógão pedi, insistentemente, que me libertasse das minhas funções e dei-lhe tempo para encontrar quem me substituísse, razão pela qual não pedi, formal e publicamente, a minha demissão”.

A carta com que Constança Urbano de Sousa se demite, revela uma situação demasiadamente má para ser verdade. A argumentação que usa, não difere muito daquela que foi usada por quase todos os que, nos últimos tempos, defenderam a sua saída, por óbvia falta de autoridade. “Não tinha condições políticas e pessoais para continuar no exercício deste cargo”, estas palavras não são proferidas pelos que expressaram esta mesma ideia, alguns desde Pedrogão Grande, mas pela própria Constança Urbano de Sousa. Desta vez, “tem de aceitar”, quase suplica!

Com esta carta, aquela que, até hoje, foi responsável pela pasta da Administração Interna, iliba-se de qualquer responsabilidade pela trágica situação a que chegamos em Outubro, uma responsabilidade que recai agora e inteiramente na teimosia do próprio primeiro-ministro. “Dei-lhe tempo para que me substituísse”, diz, referindo-se ao período posterior a Pedrogão Grande.

Sabemos então que o país não só estava com um comandante de proteção civil interino, mas que interina era também a própria ministra, metida num limbo político enquanto aguardava que António Costa lhe nomeasse sucessão. E isto aclara as causas da descoordenação, da incapacidade para responder à situação no terreno e, até, o famoso desabafo relativo à ida de férias.

Esta ausência real de autoridade política em exercício, explica também muitas das situações que estiveram na origem do drama. Explicam que ninguém tivesse decidido alargar o período de alerta, apesar das óbvias condições climáticas. Explica que apenas tivéssemos 18 meios aéreos, contra os 48 de 15 dias antes. Explica que os postos de vigilância estivessem vazios porque ninguém considerou que, dada a situação, se deveria ter alargado o contrato com os vigilantes… Todas estas decisões podem e devem ser tomadas, mas exigem comando e decisão política, e já sabemos que na Proteção Civil tínhamos um interino e à frente do ministério, também.

Mas além de tudo isto, foi-nos revelado algo ainda mais terrível: A substituição dos comandantes de proteção civil foi feita dois meses antes de começar a época de incêndios, e temos mais do que razões para concluir que o critério das escolhas não foi a competência, mas a proximidade político-partidária (ver aqui).

Numa entrevista ao Expresso, o presidente da Câmara de Viseu denunciou a inoperância do novo comandante distrital, um dos 13 que entraram em Abril deste ano, depois da exoneração dos anteriores. Tudo isto entre diversas outras mexidas na estrutura organizacional, com escolhas que recaíram em algumas pessoas sem currículo pessoal, mas com currículo partidário.

Aliás, o melhor exemplo desta politização foi a nomeação do próprio Presidente desta estrutura, Joaquim Leitão, o que na altura gerou protestos. Em 2005 tinha sido adjunto no Ministério da Administração Interna, quando António Costa era ministro, um ano depois, com o atual primeiro-ministro no mesmo cargo, foi nomeado segundo comandante na Autoridade de Proteção Civil e em 2008, como presidente da Câmara de Lisboa, nomeou-o comandante do regimento de Sapadores Bombeiros. Conclusão: Claramente não foi uma escolha da ministra mas do primeiro-ministro e, quanto às restantes mexidas,  temos motivos para crer que foram decididas da mesma forma e, até, com intromissão das estruturas partidárias locais.

Num artigo que escrevi recentemente, a propósito da assombrosa entrevista de José Sócrates, salientava que um dos maiores custos dum corrupto é subverter a hierarquia das opções: As mais rentáveis para o decisor, em detrimento das mais necessárias para o país. Concluía que, em junho, 65 portugueses tinham pago o respetivo preço da pior forma. Sabemos, agora, quantos portugueses pagaram também pela partidarização do aparelho de Estado, uma doença que nos tem vindo a corroer e que, infelizmente, é transversal: não é nem foi exclusivamente induzida pelo atual primeiro-ministro.




Luís Novais

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

OPERAÇÃO MARQUÊS E CUSTO DA CORRUPÇÃO


Não perguntemos quanto recebem os corruptos, que isso é o menos. O grande e verdadeiro custo é o de opções megalómanas e desnecessárias, o de preços inflacionados, o da total ineficácia e esse tendencial descrédito dos cidadãos na Democracia que é, apesar de tudo, a nossa melhor proteção. Um desses maiores preços foi cobrado há três meses, pagaram-no 65 portugueses.

No Peru, onde vivo, há também um grande debate em torno do cancro da corrupção. O país é uma das vítimas do escândalo lava-jato, que teve repercussões em toda a América Latina. Neste momento tem dois ex-presidentes presos, um fugido no estrangeiro e com mandato de captura internacional, outro que está a ser investigado e nem o atual escapa às suspeitas. Para que se tenha uma ideia da dimensão, corre-se o risco de ter 36 anos de presidências atrás das grades e, entre ex-governantes, governadores regionais e alcaldes (presidentes de câmara), já se perdeu a conta a quantos estão presos.

Não surpreende, portante, que todo o país exija medidas concretas e que a sociedade civil tenha iniciado um intenso debate sobre o tema.

Recentemente, estive num debate sobre esta questão, no qual participaram o presidente da confederação patronal, o defensor del Pueblo (espécie de provedor de justiça) e o Prof. Juan Mendoza, um economista e académico que se dedica a investigar o tema.

A intervenção mais interessante foi a deste último, que denunciou o real custo da corrupção, alertando para aspetos que muitas vezes ficam esquecidos. “O verdadeiro preço para um país – disse – não é o valor direto que recebe o corrupto, mas a ineficiência imediata”. Esta é uma constatação que faz todo o sentido; o modus operandi do corruptor não é a inflação inicial do preço que até costuma ser inferior ao da concorrência, mas a certeza de que assinará adendas contratuais por custos supostamente imprevistos e por obras suplementares. Além disso, sabe que não vai ser devidamente fiscalizado e tudo isto provoca uma tremenda distorção concorrencial, que gera um custo muito mais elevado do que o simples valor recebido pelo político de serviço.

Outro problema, disse, é que a corrupção distorce as prioridades, levando o decisor a optar pelas iniciativas que lhe são mais rentáveis e não pelas mais necessárias. Juan Mendoza deu o exemplo da construção da via interoceânica que liga o Peru ao Brasil, construída pela Odebrecht no tempo o presidente Toledo, o tal que está prófugo por suspeitas muito fundamentadas de ter recebido 15 milhões de dólares por este projeto. “Nesta estrada circulam menos de 2% das exportações do Peru para o Brasil, no entanto o seu custo final será de 4,5 mil milhões de dólares”, disse. Se considerarmos que 50% das crianças do país sofrem de desnutrição crónica, com graves consequências para o seu desenvolvimento cognitivo, percebemos a dimensão do preço que pagamos pelas decisões dum político corrupto.

Relacionado com a questão da ineficácia, lembrou ainda o custo de afastar as empresas honestas, que sabem não ter hipóteses num mercado corrompido e preferem ir trabalhar para outros lugares.

Mas há uma questão sistémica gravíssima que está relacionada com uma entrevista que recentemente fiz ao líder da Amnistia Internacional: A descrença nos políticos leva os eleitores a escolherem outsiders demagogos e impreparados, como é o caso de Trump nos Estados Unidos, ou Duterte nas Filipinas. “Quando os cidadãos estão descontentes, é fácil o aparecimento de líderes populistas com propostas alternativas que põe tudo em causa”, respondeu-me.

A corrupção é um problema de todos os sistemas políticos. Apesar de tudo, nos democráticos, que têm imprensa livre e autonomia do poder judicial, é muito mais fácil que se descubra e que se julgue imparcialmente.

Os escândalos a que temos assistido, levam muitos cidadãos a perderem confiança no regime, predispondo-os a serem demagogicamente conduzidos à defesa de sistemas totalitários, que são por norma ainda mais corruptos. O que os políticos e empresários desonestos põe então em causa, é a própria Democracia, a liberdade de imprensa e, consequentemente, os Direitos Humanos.

Digo isto a propósito da contabilidade que se tem feito dos benefícios supostamente (ou mais do que supostamente) recebidos pelos implicados na operação Marquês. Esta acusação saiu quase ao mesmo tempo que se concluiu o inquérito à tragédia de Pedrogão Grande. Enquanto numa notícia víamos José Sócrates a defender a construção da linha de TGV, noutra a Comissão de Inquérito falava de 65 mortos, enquanto numa sabíamos que o contrato com o Grupo Lena era blindado, noutra falava-se dum serviço de proteção civil absolutamente descoordenado, numa do apoio do Estado a um banco durante uma OPA, noutra que o SIRESP não funcionou e é obsoleto…

Por isso, não perguntemos quanto recebem os corruptos, que isso é o menos. O grande e verdadeiro custo é o de opções megalómanas e desnecessárias, o de preços inflacionados, o da total ineficácia e o tendencial descrédito dos cidadãos na Democracia que é, apesar de tudo, a nossa melhor proteção. Um desses maiores preços foi cobrado há três meses, pagaram-no 65 portugueses.



Luís Novais

Foto: Klinkim


quarta-feira, 11 de outubro de 2017

"MARIANELA" DE PÉREZ GALDÓS, UMA OBRA QUE SURPREENDE



Rompendo com os modelos literários da Europa Ocidental do seu tempo, “Marianela” vai muito além da novela social e de costumes, aproximando-se da literatura russa coeva. Conduz-nos a uma profunda reflexão sobre a condição humana, sobre o “eu” na sua relação com o “outro”, o contingente e o absoluto, os conflitos éticos duma sociedade que não tem a moral conciliada com o conhecimento. Além disso, antecipa tendências literárias, levantando angustias que nos surgirão com o período modernista.

A cegueira é uma das metáforas mais exploradas nas diferentes literaturas, incluindo a mitológica. Desde Prometeu que a oposição entre ver e não ver nos ficou como metáfora do conhecimento e da consciência. Oferecendo a luz à humanidade, Prometeu foi agrilhoado por Zeus, castigo merecido porque a capacidade para ver, para conhecer, era um poder quase tão grande como o do próprio pai dos deuses.

Também na tradição judaica, a primeira criação é a luz. Foi por se terem atrevido a comer o fruto do conhecimento, que Adão e Eva ganharam consciência de si e, consequentemente, vergonha. Não menos cauteloso do que o deus grego, o judaico expulsa o casal do paraíso, temendo que alcancem agora a árvore da vida eterna, o que os tornaria seus semelhantes.

Platão recorreu à metáfora. Naquela caverna, o único que consegue escapar não pode mais viver aí, porque, tendo visto a luz, os olhos com que a viu não vislumbrariam na penumbra, e também porque os parceiros de cativeiro o considerariam cego e blasfemo. 

Outras vezes, a metáfora é usada num sentido inverso. Édipo cega-se para ser livre: Tem de ver apenas o seu interior, se quer fugir a um destino que corre fora de si, que o determinou e que o conduziu à tragédia.

Por cá, também o binómio luz-trevas foi usado como sinónimo de conhecimento ou ignorância. Numa das suas disposições combativas e otimistas, escreveu Antero dirigindo-se ao poeta e jornalista Guilherme de Azevedo:

“Viva e trabalhe em plena luz: depois,
Seja-me dado ainda ver, morrendo,
O claro sol, amigo dos heróis” (“Mais Luz”)


O mesmo Antero que, num momento de resignação pessimista, escreveu “Fada Negra”:

Razão! velha de olhar agudo e cru
E de hálito mortal mais do que a peste!
Pelo beijo de gelo que me deste,
Fada negra, bem-dita sejas tu!

Bendita sejas tu pela agonia
E o luto funeral d'aquela hora
Em que eu vi baquear quanto se adora,
Vi de que noite é feita a luz do dia!

Saramago usaria o mesmo recurso. A cegueira branca é talvez aquela que não permite ver, nem o mundo de fora nem o de dentro, e é, por isso, a verdadeira, a total, a que ofusca os dois lados da caverna, o “outro” e o “eu”. A conclusão de “Ensaio Sobre a Cegueira” conduz-nos a uma ideia, que vem na mesma linha dos trabalhos de Chomsky sobre o controle das sociedades liberais: Pessoas que veem não vendo, vivem modelos que legitimam a exploração e libertam sem libertar.

“Marianela”
Em “Marianela” (1878), Pérez Galdós (1843-1920) entrou também de frente e em força na utilização desta metáfora, colando-se à caverna de Platão, mas utilizando-a duma forma menos óbvia.

Antes de entrar na obra, devo dizer que a literatura espanhola do século XIX era-me, e é, uma desconhecida, um desconhecimento que julgo afetar a generalidade dos portugueses. É curioso que acompanhamos a História e a cultura do país vizinho até ao término da guerra dos 30 anos, ou tão só até 1640. Tudo o que se passou depois, vai entrando num limbo que, após as invasões francesas, é quase total, com exceções óbvias para pequenos grupos de estudiosos. É um pouco como se as luzes de Paris, que ofuscaram a nossa geração de 1870, e que aqui chegaram à força do carvão e do comboio, continuassem a ofuscar-nos, negando-nos a luz para o que se passava numa Espanha que era então decadente e que, para os nossos intelectuais desse tempo, estava longe de ser modelo ou sinónimo de progresso.

Consciente desta falha, decidi que era hora de superá-la e aproveitei a Feira Internacional do Livro de Lima para me abastecer. Acabo de ler o primeiro de muitos livros que trouxe comigo, “Marianela”.

Para usar a mesma metáfora, o comentário que faço, é, assim, como as primeiras impressões de quem não viu durante anos, de quem começa a tatear com os olhos um mundo nunca antes conhecido. Seria talvez mais cauteloso não comentar esta obra antes de “honesto estudo com longa experiência misturado”, mas decidi-me pelo atrevimento: Talvez as primeiras impressões, as primeiras conclusões, as primeiras comparações, possam ser as menos preconceituosas e as mais genuínas. Do ponto de vista pessoal, também me servirá para mais tarde poder compreender o meu próprio percurso pelo conhecimento desta literatura, uma empresa para a qual a primeira leitura de Galdós me alentou.

A surpresa
Estava habituado às leituras do século XIX francês e inglês que, depois do sentimentalismo romântico, foram entrando de frente num positivismo de denúncia social, primeiro realista, depois naturalista. Do outro lado, conheço bem a literatura russa, a que mais aprecio, e, de entre esta, sobretudo a do mestre dos mestres que foi Dostoievski, percursor de, no mínimo, duas ou três gerações literárias. Trata-se duma escrita que penetrou a fundo na natureza das grandes questões humanas, indo muito além da crónica de costumes, então muito em voga na Europa ocidental. Uma crónica, ora ácida ora sarcástica, que além Báltico foi bem representada por Gogol, e aquém por Flaubert ou Balzac, Dickens ou Zola e, claro, pelo nosso Eça.

Sem que estivesse preparado para isso, Pérez Galdós faz-me a surpresa de conduzir a uma literatura das profundezas humanas, tão característica dos russos de seu tempo, mas contrária às correntes então vigentes na Europa ocidental.

Entrando na história
A história parte duma metáfora aparentemente simples. Marianela é a pobre órfã, criada de favor pela família dum capataz de mina. Foi desprezada desde sempre, e não teve outra educação que não fosse aquela que aprendeu por si mesma, observando bosques, montanhas e penedos. Dela dirá o Dr. Teodoro Golfin, o médico que, inadvertidamente, desencadeará a tragédia: “…és uma pessoa admirável, nascida para o bem mas desvirtuada pelo estado selvagem em que viveste, pelo abandono e pela falta de instrução”.

Desprezada pelo entorno, Marienela ama Pablo Penáguilas, o jovem cego de quem é guia, o único herdeiro do abastado proprietário Francisco Penáguillas.

Este jovem aparece como uma espécie de “Alegoria da Caverna” inversa: “Não vejo o mundo de fora, mas vejo o de dentro, e todas as maravilhas da tua alma foram-me reveladas desde que te tornaste na minha guia”, diz a Marianela (p 77).

Pablo, o invisual, é uma espécie do oposto de Marianela, a sensitiva. Pablo é belo, Marianela é feia; Pablo amado dentro da família, Marianela órfã e desprezada pelos adotantes; Pablo rico, Marianela pobre; Pablo, o cego que imagina a realidade desde o interior de si mesmo, Marianela, a sensitiva que gera ideias dispersas a partir da literalidade do que vê.

De onde nos vem o conhecimento?
Partindo desta dualidade, entramos na vertente mais abordadas na obra, que é a origem do conhecimento humano. “Desde que tenho uso da razão – diz Pablo durante uma caminhada com a sua guia - que o meu pai costuma ler-me todas as noites diversos livros de Ciências e de História, de artes e de entretenimento. Essas leituras e estes passeios, posso dizer que são a minha vida toda” (p 82). Quando os autores escrevem com claridade, diria ele a seguir, os livros “Contêm ideias sobre as causas e os efeitos, sobre o porquê do que pensamos e o modo como pensamos, e ensinam a essência das coisas” (p 83).

Avançando a partir daqui, surpreende-nos um livro contem em si todas as filosofias, desde as mais antigas até à modernista crise da racionalidade. Poderíamos discorrer capítulos e capítulos, onde abordássemos a relação entre “Marianela” e a clássica abordagem platónica, poderíamos entrar na medieval questão dos universais, no racionalismo cartesiano, no empirismo inglês… mas são talvez as questões e as respostas kantianas aquelas que surgem com mais força, talvez porque o próprio Kante é a sintese de todas estas correntes.

“Marianela” é escrito por volta de 1878, tinha Galdós 35 anos. Kant morreu 74 anos antes e as suas principais obras perfaziam 93 e 86 anos, nos casos respetivos da “Crítica da Razão Pura” e da “Crítica da Razão Prática”. A filosofia do professor de Konigsberg estava profusamente difundida e a influência direta já era a dos discípulos que procuraram suprir a brechas do enorme edifício teórico do mestre. Entre eles, Hegel, que morreu em 1831, quatro anos antes do nascimento do autor de “Marianela”.

Contemporâneo desta obra foi Karl Marx, cujo materialismo bebeu de Hegel, o mesmo que lhe permitiu considerar o homem como parte dum movimento universal que o transcendia e, como tal, apenas uma peça da dialética a que tinha de pertencer, sem ter o direito de dominá-la ou, sequer, capacidade para fazê-lo.

Em “Marianela” podemos encontrar as inquietudes que resultam de um Kant revisitado, observar os desenvolvimentos filosóficos que se lhe seguiram e encontrar as dúvidas surgidas com a crise da racionalidade, que rebentou vários anos depois da sua publicação. Esta obra de grande profundidade é, assim, uma espécie de ponte entre a racionalidade do século XVIII e a crise dessa racionalidade no século XX.

Um pouco de História da Filosofia
Tendo a ciência de ser simultaneamente universal e progressiva, até que surgisse a Filosofia de Kant lidou-se mal com a relação contraditória destas duas necessidades, aparentemente inconciliáveis. A universalidade, filha direta do pensamento medieval e de base teológica, lidava mal com o experimentalismo herdado do renascimento. Aparentemente, o eterno universal não rima com a inconstância evolutiva.

Já desde Descartes se sabia que esta questão estava irresoluta e nem o mestre do racionalismo moderno deverá ter acreditado na resposta glandular que deu, quando lhe perguntaram pelo ponto de encontro entre a res cogita e a res extensa. Os avanços de Leibnitz e sobretudo de Espinoza foram passos em frente, mas para os iluministas do século XVIII era já claro que algumas das conclusões de Leibnitz eram risíveis. Voltaire mostrou-o com um humor ácido em “Cândido”.

O problema agudiza-se se nos lembrarmos que, enquanto no continente se desenvolvia este racionalismo universalista, no reino Unido surgia um empirismo que redundou na negação de qualquer conhecimento universal e no mais radical dos subjetivismos.

Decididamente, havia cabos soltos que precisavam de ser ligados, e foi a isso que Kant (1724-1804) se dedicou

O problema da relação entre o universal e a mudança, foi o grande objeto da resposta que o filósofo de Konigsberg deu em “Crítica da Razão Pura” (1788): As noções de espaço e tempo existem a priori e não podem observar-se porque são tudo sendo nada, são formas interiores e sem conteúdo que nos dotam de capacidade para conhecer. Por outro lado, o mundo exterior fornece-nos um “caos de sensações” sintéticas, que será catalogado e transformado em conhecimento, graças a essas formas universais apriorísticas. A faculdade de conhecer seria, assim, uma espécie de biblioteca, onde a organização classificativa detém o carater universal apriorístico, e os livros catalogados em estantes são as sensações sintéticas, que entraram como caos e foram arrumados com um sentido. Estava criado o conceito de “juízos sintéticos a priori” e, duma penada, conciliavam-se 2500 anos de filosofias aparentemente inconciliáveis.

Resolvendo esta difícil equação, Kant conciliou a universalidade com a mudança, dotando o século XIX da ferramenta que lhe faltava para que se transformasse, como se transformou, no século da ciência. Se as elites desse período estavam certas de atingir a verdade e, até, o bem, graças à liturgia do método científico e ao primado da lei científica, isso deve-se ao pensamento daquele homem aparentemente obscuro, que pouco mais mundo conheceu do que a calçada que levava de sua casa à universidade de Konigsberg.

A personagem “sintética” e o personagem “á priori
Em “Marianela” encontramos muitos destes conceitos, e também as incertezas que já se geravam e que anunciavam a crise do racionalismo no século XX. Marianela, a personagem principal, é uma espécie de “caos desordenado”, sem forma, ela vê o mundo sem o organizar mentalmente, sem criar conceitos, sem lhe dar uma ordem. Cada observação é algo em si mesmo, que ela compara instintivamente com um outro algo e une numa espécie de bondade aglutinadora, materializada na ideia de beleza que lhe dá a Virgem Maria.

Num dos muitos passeios que dava com Pablo, este começa a falar dum livro que seu pai lhe leu, sobre o conceito de beleza. Não alcançando o conceito, Marianela precisou de concretizar: “…não será como um (livro) que tem o Padre Centeno, que se chama… As mil e não sei quantas noites?” (p 83) Pablo responde-lhe que não, que se refere ao conceito universal. Uma vez mais, a resposta de Marianela é sintética: “Como por exemplo a Virgem Maria (…) a quem não vemos nem tocamos, porque as imagens não são ela mesma se não o seu retrato” (p 84). A conversa continua, mas “Nela, pouco atenta a coisas tão subtis, retirava as flores das mãos do seu amigo e combinava-as pelas suas cores exuberantes” (p 84).

Fixemo-nos neste diálogo para traçar agora o perfil de conhecimento de Pablo. Referindo-se ao livro, diz o jovem cego que “O autor falava da beleza, e dizia que era o resplendor da bondade e da verdade, junto com muitos outros conceitos engenhosos e tão bem referidos e pensados que dava gosto ouvi-los” (p 83). É aqui que Marianela fala nas “Mil e não sei quantas noites”. A resposta ao sintetismo da jovem é apriorística: “Não é isso, tontinha; o livro fala da beleza em absoluto… Não serás capaz de entender a beleza ideal?... Claro que não entendes… Como hás de saber de uma beleza que não se vê, nem se toca, nem se apreende com nenhum sentido?” (pp 83-84).

Os exemplos poderiam multiplicar-se. Ao longo de todo o livro, Marianela é a parte sintética e Pablo a parte apriorística dos juízos sintéticos apriorísticos que Kant teorizou. Isto fica muito claro neste mesmo diálogo: Enquanto Pablo lhe fala de beleza, Marianela vê-a, ele fala do conceito, ela faz um ramo de flores exuberantemente coloridas... que ele não pode ver.

A forma universal como um Pablo cego analisa o mundo, deixa bem clara a sua incapacidade para entender algo fora dessa universalidade. Só assim se compreende que faça desabafos como, “…às vezes o que tem mais vista, vê menos” (p 86), ou, “O dom da vista pode causar grandes desvios… afasta os homens da compreensão da verdade absoluta”.

As faculdades que se complementam
Fruto desta complementaridade, entre Pablo e Marianela desenvolve-se uma ligação amorosa. É como se Galdós nos quisesse transmitir a ideia que não podemos viver apenas do universal, ou apenas do sintético. “Acabas de dizer mil disparates – diz-lhe Pablo – e eu, que conheço um pouco a verdade, o mundo e a religião, senti-me comovido e entusiasmado enquanto te ouvia. Sinto desejos de que fales dentro de mim”. A resposta deixa clara a complementaridade: “(sinto que) estou no mundo para ser a tua guia, e que os meus olhos não serviriam para nada se não servissem para guiar-te e contar-te como são todas as belezas ” (p 77).

Analisando o mundo apenas com base em conceitos, Pablo parece incapaz de estabelecer uma separação entre estes e o sintetismo do “caos de sensações”. Por isso não imagina possível que Marianela possa ser sensorialmente feia: “Prefiro não ver a tua beleza com os olhos, porque vejo-a dentro de mim, clara como a verdade que proclamo interiormente”.

O drama
O drama entra em cena pelas mãos do Dr. Teodoro Golfin, o oftalmologista que opera Pablo, devolvendo-lhe a visão. Intuitiva, Marianela compreende imediatamente o que isso significa: “Quem é a Nela? – pergunta-se – Ninguém. A Nela só é algo para o cego. Se os seus olhos se curam e me vê, caio morta… Ele é o único para quem a Nela não é menos do que os gatos e os cães”.

Entretanto, entra em cena Florentina, a prima de Pablo, ela sim dotada de uma grande beleza física e que os respetivos pais procuram casar. Desesperada, quando se inteira de que o cego recuperou a visão, Marianela foge, não quer que ele a veja e pensa no suicídio. É encontrada pelo Dr. Golfin a quem jura que Pablo jamais a verá:

“- E porquê?
- Porque (sou) muito feia… Pode amar-se a filha da Canela (a sua mãe) quando se tem os olhos fechados, mas quando se abrem e se vê a menina Florentina, não se pode amar a pobre e ridícula Marianela…” (pp 216-217)

O cego vê
Com um Pablo desperto para um mundo que nunca antes vira, Galdós conduz-nos de novo a kant, para quem o espaço e o tempo eram as duas faculdades apriorísticas que nos permitiam transformar em conhecimentos “o caos de sensações”. Tendo do espaço uma ideia que nunca observou, é precisamente a visão da tridimensionalidade aquela que tem mais dificuldade a dominar:

“As imagens entravam, digamos assim, pelo seu cérebro violenta e atabalhoadamente com uma espécie de investida brusca, de tal modo que ele pensava chocar contra os objetos; as montanhas distantes pareciam-lhe ao alcance da mão, e via os objetos e as pessoas que o rodeavam tal como se rapidamente pudessem cair sobre os seus olhos” (pp 227-228)

E é então que toma consciência da diversidade, do “caos de informação” que, entrando pelos sentidos, formam o conhecimento. “Tudo isto é belo e grandioso, ainda que me faça estremecer” (p 229).

O drama atinge o climax quando Pablo encara Marianela e, tendo-a idealizado bela, só realmente a reconhece quando esta estendeu “uma mão magra, morena e áspera, e tomou a do moço Penáguillas, que, ao sentir o seu contacto, estremeceu dos pés à cabeça e lançou um grito em que toda a sua alma gritava”. Afinal, a Marianela que aprioristicamente imaginou dotada de toda a beleza, era aquela criatura frágil e feia.

A jovem já não tinha qualquer papel neste mundo. Deu dois beijos na mão de Pablo “…e ao dar o terceiro, os seus lábios deslizaram inertes”. “Matou-a! Maldita seja a sua vista!”, gritou o Dr. Golfin.
Pablo recuperou a visão e, com a visão, a capacidade para encher o espaço e o tempo com as sensações do mundo, o mesmo papel que até aí era a missão de Nela. Quebrou-se a aliança: O jovem recuperou o que Marianela lhe dava, sem que ela tivesse reciprocidade, exceto por uma vaga e inconsequente promessa do Dr. Golfin, que prometia uma educação que a mudaria.

Anunciando outras crises
Como disse, vejo este livro como uma ponte entre as certezas que nasceram no século XVIII, que se tornaram dominantes no XIX, e as dúvidas e angústias do século XX, dominado pela crise da racionalidade. Essa ponte com o que estaria para vir, é estabelecida também pelo Dr Golfin, um médico crente na racionalidade, na Ciência e na capacidade para reformar o ser humano a partir do conhecimento.

É de tal forma assim, que o médico analisa Marianela como um fruto da falta de educação e pretende reformá-la. Num capitulo significativamente intitulado “Domesticação” (p 208), diz-lhe: “Pobre criatura, abandonada aos teus sentimentos naturais, sem instrução nem religião, sem nenhum apoio afetivo e desinteressado que te guie” (p 210). E conclui umas páginas depois:

“És uma pessoa admirável, nascida para o bem, mas desvirtuada pelo estado selvagem em que viveste, pelo abandono e pela falta de instrução, pois falta-te até o mais elementar!
(…)
Vou ensaiar em ti um sistema de educação… veremos se sei lapidar esse bonito diamante. Ah, quantas coisas desconheces! Eu descobrirei um novo mundo na tua alma, farei com que vejas mil maravilhas assombrosas que até agora não conheceste (…)” (pp 222). “Mas saberás tudo, serás outra. Deixarás de ser a Nela, prometo-te, para seres uma menina com mérito, uma senhora de bem” (p 224)

Esta fé do médico na força da educação científica para reformar a sociedade, expressa-a também numa conversa sobre Nela que tem com Florentina: “É um exemplo do estado a que chegam seres moralmente organizados para o bem, para a sabedoria, para a virtude, mas que pelo abandono e desdenho não podem desenvolver o potencial da sua alma (…) Não tem mais educação, além da que ela mesma se deu, como uma planta que se fecunda com as suas próprias folhas secas” (p 247).  

A fé do médico na educação fica claramente expressa na continuação deste diálogo. “…vamos trazê-la ao nosso século”, e “…é o mesmo que criar um novo ser” (p 249).

Mas este médico cheio de certezas na ciência e no papel reformador da educação, entrará em crise quando conclui que foi a sua “boa” ciência que conduziu àquela trágica morte. “Matou-a!”, exclamou para Pablo, “Maldita seja a sua vista!”, o mesmo é dizer que, maldito seja eu, maldita a ciência que quebrou essa harmonia.

É no decurso da trágica morte que as certezas do médico se transformam em crise: já não sabe o que sabe, já não sabe se a sua ciência conduz ao bem. “Não sei se morre de vergonha, de ciúme, de despeito, de tristeza, de amor contrariado. Singular patologia! Não, não sabemos nada…, sabemos apenas o que é trivial”. Florentina responde-lhe também com descrença: “Oh, que médicos!” A esta observação, Golfin contrapõe apenas um desabafo: “Não sabemos nada, conhecemos um pouco da superfície” (p 260).

 Ao longo da obra, o Dr. Golfin surge como um símbolo da modernidade. Ele é um homem que confia na capacidade da ciência para criar o verdadeiro conhecimento, para gerar o bem, e acredita na sua própria capacidade para agir sobre o mundo. Numa palavra, o médico é o produto acabado da filosofia kantiana: Alguém que uniu o absoluto e o contingente dentro de si mesmo e que, portanto, é profundamente livre.

Se Kant escreveu a “Critica da razão Pura”, onde desenvolveu uma teoria do conhecimento que uniu milhares de anos de teses filosóficas inconciliadas, escreveu também “Crítica da Razão Prática”, onde entrou no caminho da moral e da lei moral. “Age como se a tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal”, o imperativo categórico é uma espécie de átomo moral, a partir do qual estaríamos preparados para tomar todas as decisões.

No entanto, se Kant deixou brilhantemente resolvido o problema da relação entre o universal e o contingente, criou uma nova disfunção, que é a existente entre a moral, o imperativo categórico, e uma ação, dirigida por “juízos sintéticos a priori”. Ou seja, entre um agir dirigido pelo conhecimento da razão pura, e outro que se baseie na razão prática. A ciência, a grande ciência, a deusa do século XIX, podia afinal ser imoral!... e foi-o, como demonstraria a História.

Foi na constatação desta difícil conciliação que nasceu a Filosofia de Nietzche (1844-1900) e que se inaugurou a angustia modernista, tão bem representada em autores como kafka (1883-1924), James Joyce (1882-1941), o nosso Pessoa (1888-1935) e pelo percursor Oscar Wilde (1854-1900).

Conclusão
Rompendo com os modelos literários da Europa Ocidental do seu tempo, “Marianela” vai muito além da novela social e de costumes, aproximando-se da literatura russa da mesma época. Conduz-nos a uma profunda reflexão sobre a condição humana, sobre o “eu” na sua relação com o “outro”, o contingente e o absoluto, os conflitos éticos duma sociedade que não tem a moral conciliada com o conhecimento. Além disso, antecipa tendências literárias, levantando angustias que nos surgirão com o período modernista.



Luís Novais

Nota:
Usei a seguinte edição: PEREZ GALDOZ, Benito. MARIENELA. Alianza Editorial, Madrid, 2008 (primeira edição, 1878),. A edição que tenho é original em língua castelhana, optei por traduzir todas as citações.
A lei sempre foi feita pela História. Não conheço nenhum caso em que tenha sido ao contrário.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

FORÇA E DIÁLOGO NA QUESTÃO CATALÃ


Não é pela imposição que isto se resolve, já temos História suficiente para saber que a brutalidade gera brutalidade, que o ódio gera ódio, que o silenciamento conduz à revolta.

“Morte na Arena” foi o título da reflexão que escrevi no dia 3 de outubro, sobre a questão catalã. Manifestava a minha incompreensão diante da atitude radicalmente imperialista de Rajoy, assim como pelo secessionismo sem regras de Puidgemont. Num certo sentido, punha-me ao lado daqueles que, uns dias depois, se vestiriam de branco, apelando ao diálogo e ao compromisso.

As democracias maduras vivem dessa capacidade de estabelecer pontes, de assumir diferenças, procurar locais de encontro e, quando não é de todo possível, concordar que não concordam e encontrarem formas cordatas de saída. Os edifícios institucionais e legislativos blindados, que não permitem qualquer desvio a uma linha traçada e que criminalizam a discordância, são próprios, ou de ditaduras, ou de democracias débeis.

Compreende-se que a Constituição espanhola de 1978 fosse fechada. Afinal, o país via a seu lado um outro, Portugal, onde o processo de transição acabava de resultar dum período revolucionário gerador de uma grande instabilidade e de potenciais ajustes de contas, que afinal não se verificaram. A sociedade espanhola tinha bem vivo o trauma duma guerra civil sem limites e duma ditadura sanguinária. Nestas circunstâncias, é natural que tivesse temor de si mesma; qualquer brecha poderia ser como aquele pequeno furo numa grande represa.

Entretanto passaram 40 anos. Se, em quatro décadas, esta democracia não atingiu maturidade para permitir uma sociedade que negoceia, então têm razão os catalães mais independentistas por quererem construir a sua própria.

No discurso de hoje, Puidgemont começou por descrever o caminho que levou à situação atual: Uma constituição fechada, que foi aprovada como sendo o início duma mudança positiva, mas que, ao contrário, se transformou num monumento ao imobilismo. O estatuto catalão, amplamente negociado com Madrid, aprovado nos parlamentos nacional e autonómico em 2004, subscrito em referendo por 74% dos catalães, mas que um Rajoy, digno discípulo do caudillo, conduziu ao tribunal constitucional e conseguiu anular. Um referendo, o de 2014, sem caracter vinculativo, organizado por Artur Mas, então líder da Generalitat, que assumidamente não tinha outra consequência que não fosse auscultar o povo catalão, que teve 81% de votos a favor da opção por um Estado independente, mas que, apesar de não ser vinculativo, foi criminalizado e Mas condenado à inabilitação para exercer cargos elegíveis e a uma multa de 5 milhões de euros a favor do Estado espanhol…

Esta atitude de Madrid, não é duma Democracia digna desse nome,  muito menos a reação brutal com que se procurou evitar o referendo do dia 1 de outubro.

Por outro lado, neste processo, também Puigemont saltou todas as barreiras legais, também ele enfrentou e tampouco facilitou o diálogo, como deveria, por muito que a outra parte não desse mostras de qualquer abertura negocial.  Hoje porém, deu aquele passo que me parece ser o dos que estendem a mão e estão dispostos a conversar.

No discurso de hoje, o lider da Generalitat tinha três hipóteses:

                Primeira: Fazer tudo como ele mesmo e uma parte, talvez maioritária, da sociedade catalã querem, declarando a independência unilateral, sem importar-se com Espanha e com aquela outra parte da mesma sociedade catalã que não quer ir por essa via, dando-se o caso de que possa ser maioritária.
Segunda: Fazer tudo como Rajoy, a maioria dos espanhóis e um setor relevante ou maioritário da sociedade catalã querem, recuando em toda a linha, negando-se a si mesmo e humilhando os milhões de catalães que querem formar um estado independente, e que ainda agora foram já amplamente humilhados pelo comportamento abusivo de Madrid durante este processo
Terceira: Avançar um passo na direção que pretende, sem fechar a porta a uma negociação e, até, pedindo-a

Optou por esta terceira via, e defendo que ainda bem. Hoje está bem claro que Espanha tem um problema político que não se resume na Catalunha e que precisa de encontrar formas inteligentes para resolvê-lo, a bem da sua própria unidade ou, no mínimo, da convivência futura. E não é pela imposição que isto se resolve, já temos História suficiente para saber que a brutalidade gera brutalidade, que o ódio gera ódio, que o silenciamento conduz à revolta.

Não sei se esta Madrid de Rajoy estará à altura do momento histórico, tenho muitas dúvidas, mas espero estar enganado, assim como enganado acaba de provar Puigemont que eu estava em relação a ele mesmo. Estender a mão nestas circunstâncias não é sinal de debilidade mas de força. Oxalá que o outro lado não tenha a debilidade da força.



Luís Novais

terça-feira, 3 de outubro de 2017

MORTE NA ARENA. Castela e Catalunha: Crónica da imbecilidade humana


Custa acreditar. Um primeiro-ministro radicalmente intransigente, autoridades autonómicas que não recuam um milímetro, uma polícia estupidamente brutal, a rua que não se rende. E no fim, o rei, esse rei que podia ser rei real, e afinal é rei momo, incapaz de assumir a sua responsabilidade histórica, que pega na espada de matador e quer também dar uma estocada, nessa mesma arena onde já ficaram tantos, assim dos que foram para morrer e viveram, como dos que foram para matar e morreram.

Ninguém entendeu tão bem Espanha na metáfora duma corrida de touros como Hemingway. O toureiro e o orgulho do toureiro, o touro fero, o confronto brutal, onde se joga a vida e o sangue, literalmente. E por fim a glória de viver ou morrer, enfrentando o risco, morrer para viver ou viver para, orgulhosamente, morrer.

Noutros azimutes, Georges Bataille entendeu o significado antropológico dum conflito, onde a parte sacrificada se santifica, por deixar de ser parte, una, individual, para se emular no todo, no eterno plotoch primitivo, nesse holocausto em que, aos deuses, os Ulisses ofereceram latejantes carnes taurinas.

Voltando ao touro e ao toureiro: Não é viável o recuo, recuar é profano num ritual que se repete, olhos raiados em olhos raiados, em sangues que se vertem e se misturam, em tragédia que constrói o ser. Alguém tem de morrer, seja touro, glorificado pela bravura, seja toureiro, herói eternamente recordado porque à vista de todos deu vida para que todos sejam todos. Entre o touro e o toureiro estabelece-se uma aliança que não pode ser quebrada, que se quebra se uma das partes recua e desiste de destruir a outra, de aniquilar, dessangrar.

O que parece incompreensível na questão catalã, é isto. Como é que duas partes se enfrentam sem deixar margem de recuo, resquício de negociação, possibilidade de ambos darem um passo atrás para que ambos possam seguir vivos? Não, não lhes é possível: A vida é uma arena, um deles tem de morrer!

Não conseguimos entender o ponto a que se chegou  sem olhar para esta luta literal em que tantas vezes se transformam os metafóricos touro e toureiro.

Quanto aos fundamentos históricos, há-os para todos os gostos. Podíamos viajar à antiga Ampurias, num gesto semelhante ao recuo mitológico que nós portugueses fazemos a Viriato. Podíamos também considerar os séculos que vão do XI a 1734, data que a generalidade dos catalães considera a da perda da independência, o fim da guerra da sucessão entre Austrias e Bourbons.

Datas há-as para todos os gostos, havendo quem afirme que a Catalunha foi independente, frente a quem contradiga, com mesma tamanha certeza.

Não nos enredemos nesta discussão, que de tão secular e difusa, só muito levemente ajuda a explicar aquilo que se está a passar ali e agora. E ali e agora, é uma arena.

Centremo-nos no 30 de setembro de 2005 quando, depois dum intrincado processo entre o governo central e as tendências internas, o parlamento da Catalunha aprova o Estatuto Catalão, com os votos contra do Partido Popular (PP), esse partido a que, nesta história, assenta bem esse intransigente e orgulhoso personagem: El matador.

O novo estatuto entrou em vigor depois dum referendo onde obteve 74% dos votos. O texto final dava uma ampla autonomia à região, mitigada por uma prévia intensa negociação com o socialista Rodriguez Zapatero, primeiro-ministro de então, que teve de enfrentar o próprio partido para conseguir um acordo, criticado até por Filipe Gonzalez, o líder histórico.

Mas dos Zapateros não reza o sangue da arena e a arena ali estava, apelativa. O matador nunca desiste, o seu objetivo é fatal: matar ou morrer. Vencidos nas cortes, os populares juntam 50.000 apoiantes na Plaza del Sol, e um esfuziante Mariano Rajoy profere incendiário discurso:

"No hay más que una nación, la española, que formamos todos los españoles. Y no reconocemos más que un único poder soberano, cuyo propietario es el pueblo español entero". E conclui: "No hablamos el lenguaje antiguo de los derechos históricos, las soberanías medievales o los pueblos irredentos" (El País)

Depois destas palavras profusamente badaladas, Rajoy concretiza a estocada e recorre para o tribunal constitucional, apoiado em assinaturas, apoiado noutros organismos nacionais e também nalguns poderes regionais. A sentença sai a 28 de junho de 2010 e anula diversos artigos, alguns de carga afetiva, como os relacionados com a língua ou com o estatuto de nação (texto integral da sentença). Rajoy, o matador, rejubilou e recebeu uma ovação na arena.

Humilhados, mais de um milhão de catalães manifestam-se em Barcelona, sob um lema lancinante:  “Som una nació. Nosaltres decidim” (“Somos uma nação, nós decidimos”) (ver aqui). A espada não cruzou o coração, o confronto tinha de prosseguir.

A 9 de Novembro de 2014, depois dum acordo entre os partidos nacionalistas catalães, decorre um referendo, também este anulado pelo tribunal constitucional. Mas o matador Rajoy estava fragilizado pela crise económica e pelo escândalo de corrupção que rebentou em Janeiro de 2013 (ver). Até a própria coroa, afetada por diversos escândalos, enfrentava a abdicação de Juan Carlos I (19 de junho de 2014), pretexto para manifestações de rua onde se exigiu que o regime monárquico fosse referendado.

Nestas condições, o matador estava ferido. Era a hora dos líderes catalães assumirem o orgulhoso papel na arena, enfrentando o touro de Madrid com um referendo que, na prática, foi inconsequente por ser também declarado inconstitucional, mas que Rajoy não conseguiu impedir. Num resultado considerado transparente, o “sim” à independência obteve 81% dos votos.

Desta vez, a estocada, ainda que simbólica, acertou no matador. Os dois lados ainda se mantinham vivos e um tinha de morrer, cada um devia morte ao outro.

E assim chegamos ao primeiro de Outubro. O que parece incrível a olhos pouco acostumados ao sangue na arena, é que todos tenham dado o tudo por tudo, que todos se enfrentem, sem se oferecerem qualquer possibilidade de recuo. Animados pela meia vitória de 2014, os nacionalistas decidiram que era a hora de investir. Rajoy estava fortalecido pela retoma, tinha conseguido ultrapassar os escândalos de corrupção mais ou menos incólume, e contava com a certeza de um novo rei, aparentemente reforçado e comprovadamente fácil de manietar. Mas este primeiro-ministro já não era matador diante de touro, agora eram dois matadores frente a frente, e um tinha de morrer, era a Hora, era o tudo ou nada.

E o resultado foi o que estamos a ver: A intransigência nacionalista dum lado e, do outro, o obtuso cumprimento duma decisão judicial, feito com uma brutalidade que, em vez de matar o atacado, feriu talvez de morte o atacante.

Restava uma esperança: o rei. Um rei relativamente jovem, possivelmente sensível, capaz talvez de congregar. Filipe VI mantinha-se calado, sussurrava-se que prudentemente, que estava reservado para poder congregar, pacificar, juntar o que estava dividido. Era o discurso da sua vida, como o da vida de seu pai foi aquele que proferiu no dia 24 de fevereiro de 1981, salvando a democracia e legitimando a coroa.

Às 21:00 do 3 de outubro, os olhos estavam postos nas televisões, o próprio presidente da Generalitat catalã ainda não tinha aberto o jogo. O rei poderia ser de copas, reconhecendo aspirações, erros de parte a parte, chamando ao diálogo e pondo-se como penhor de um acordo a alcançar. Mas Filipe VI decidiu apenas ser mais um personagem nessa trágica arena onde alguém tem de sair morto, absolutamente morto: Acusa as autoridades catalãs de “uma falta de lealdade inadmissível em relação aos poderes do Estado”, acusa-os de “uma conduta irresponsável”, de terem vindo “a falhar, de forma reiterada, consciente e deliberada, no cumprimento da Constituição”. Quando entrou era de copas, quando saiu era de espadas, as espadas do matador, as daquele que não reconhece outro direito à outra parte, que não seja a derrota, total, fatal.

Do lado oposto, as respostas não se fizeram esperar: O rei já é visto como líder de fação. Quem esteve atento às reações, conclui que o único resultado deste discurso foi aumentar a radicalização das duas partes, todos se afastaram mais ainda, ninguém se aproximou. Pouco depois, Puigdemont afirmava à imprensa que iria declarar a independência, já estava mais ou menos claro que esta era a única via que lhe deixavam.

Provavelmente, Espanha perdeu Catalunha, por intransigência, por erros... meu Deus, que tamanhos erros! Mas atenção: ainda há vivos, a tragédia corre numa arena que continua à espera de mais sangue, tudo pode não ficar por aqui.

Custa acreditar. Um primeiro-ministro radicalmente intransigente, autoridades autonómicas que não recuam um milímetro, uma polícia estupidamente brutal, a rua que não se rende. E no fim, o rei, esse rei que podia ser rei real, e afinal é rei momo, incapaz de assumir a sua responsabilidade histórica, que pega na espada de matador e quer também dar uma estocada, nessa mesma arena onde já ficaram tantos, assim dos que foram para morrer e viveram, como dos que foram para matar e morreram.

É triste, é incompreensível, mas é Espanha e é Fiesta! Agradeço ao Mestre de Aviz.


Luís Novais


Foto: "Corrida", Picasso