quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

OFFSHORES, TRANSFERÊNCIAS E POLÍTICA ESPETÁCULO



A política atual é feita de casos, ora exacerbados e manipulados pela direita, ora pela esquerda. Enquanto a direita faz todos os esforços para criar uma cortina de fumo em torno da Caixa Geral de Depósitos, evitando que uma comissão de inquérito cumpra com o seu real objetivo, foi agora a vez do governo aproveitar uma notícia do Público, sobre a não publicação de estatísticas das transferências para off shores, levando-a ao parlamento pela mão do próprio primeiro-ministro, que sabe bem não haver qualquer relação entre a verdade e aquilo que insinuou.

A "Civilização do Espetáculo" ocupa a parte sombria da caverna platónica e tem pouca paciência para olhar a luz. Ainda assim, vale a pena fazer o esforço desmistificador.

E para desmistificar, primeiro há que averiguar se estes movimentos são ou não anormais. As estatísticas são conhecidas desde 2010. Nesse ano transferiram-se 2.2 mil milhões de euros, número que subiu a 4.6 em 2011, 4.3 em 2012, 4.2 em 2013, 3.8 em 2014 e é em 2015 que se atinge um pico de 8.9. 

Primeiro devemos perceber o que aconteceu em 2011 para que as transferências tenham quase duplicado, mantendo mais ou menos os mesmos valores até 2014, mas com uma tendência de descida justificada pela progressiva acalmia económica. 

Parece claro que existe aqui uma relação direta entre a entrada da Troika, o receio de bancarrota e as desconfianças relativamente à solidez da banca nacional e à sua capacidade para cobrir os depósitos. São receios que, infelizmente, a realidade confirmou e é natural que, na passagem de 2010 para 2011, quem tivesse dinheiro em Portugal o retirasse. 

Podemos tecer uma série de considerações, inclusive de falta de patriotismos e de solidariedade, mas não de ilegalidade. Que cada um avalie o que faria em 2012 se, por exemplo, ouvisse as notícias sobre o possível colapso dos bancos nacionais e tivesse 400.000 euros resultantes das poupanças duma vida de emigração, ou da venda duma empresa, duma herança ou do que seja… Um grande e anormal fluxo acontece, porem, em 2015, não sei em que mês, mas no seu blog Helena Garrido diz que terá sido depois das eleições de Outubro. Uma vez mais, isto confirmaria a tese comummente aceite de que os mercados não gostam da incerteza e sabemos a incerteza que reinou depois das eleições, não sendo difícil adivinhar que investidores e aforradores tivessem receio dum governo do PS apoiado pelos partidos à sua esquerda. Receios que, diga-se de passagem, o futuro demonstraria serem infundados.

Note-se que todo este dinheiro foi transferido de bancos para bancos, não andou a circular nos fundos falsos de malas. Se alguém crê que aquilo que tem no banco é ignoto ao fisco, desengane-se, hoje todos os movimentos estão registados e são controlados. Não temos por isso nenhuma razão para crer que tudo não tivesse sido já tributado como rendimento.

Acresce que todas estas transferências são legais. Há uma lista de países onde não seriam, mas parece-me desnecessário enumera-los.

Posto isto, a análise destes números tem interesse para quem queira estudar a psicologia dos mercados, mas nada leva a supor que possa ter relevo na análise da fuga ao fisco.



Luís Novais


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quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

"MENTE MAS FAZ OBRA"?


Defender Centeno nestas circunstâncias já não é possível. Aceitar que mentiu mas teve resultados, é uma versão quase direta do célebre “rouba mas faz obra”. A polis não pode aceitar estes “mas” relativamente aos que a governam.

Em vários debates defendi Mário Centeno durante a  prolongada polémica que ocorreu em torno da isenção aos administradores da Caixa. Cheguei a escrever a um amigo, deputado do PSD, reclamando do que me parecia um exagero quase farisaico.

Depois veio o depois. Primeiro, a diferença entre a data de aprovação e a publicação do famoso decreto. Aí comecei a duvidar, mas aquelas explicações de António Costa deixaram-me aquém da dúvida razoável. A plena deceção aconteceu neste último episódio, o das mensagens entre o Ministro e o indigitado presidente do banco público.

Nestas circunstâncias já não é possível defender Centeno. Aceitar que "mentiu mas teve resultados", é uma versão quase direta do célebre “rouba mas faz obra”. A polis não pode consentir estes “mas” relativamente àqueles que a governam.

Alguns amigos argumentam-me que os SMS são mensagens privadas. Curiosamente, nesse mesmo dia rejubilei com a demissão de Michael Flynn, o inenarrável conselheiro de segurança do inenarrável presidente Trump. Nem o mais clownesco sucessor de George Washington conseguiu segurar um colaborador que oficialmente mentiu, tampouco tentou esticar a corda ao ponto de dizer que as conversas telefónicas são privadas. Todos, até os mais altos responsáveis políticos, têm direito a uma vida pessoal, desde e quando esta não interfira com as funções públicas e, sobretudo, desde e quando não procurem transformar em privado aquilo que é político.

Mário Centeno caiu na ratoeira que a si mesmo armou: Mentiu e, pior, mentiu ao parlamento. Desconfio até que o presidente Marcelo já tinha conhecimento da existência destas mensagens; tenho dúvidas se as certeiras declarações sobre a inexistência de prova escrita não foram parte dum drama cujo climax acaba de se tornar público.  

Qualquer país é constituído por um corpo de cidadãos com várias funções. A maioria não se dedica à política orgânica, uns porque não sentem vocação, outros porque têm consciência das suas fragilidades. Todos temos o direito de exigir mínimos a um político: Que não se aproprie de bens públicos, que não minta… numa palavra: Honestidade, a honestidade tem de ser a essência da gestão pública. Quem falha aí, falha em tudo. E é perante esta falha que se torna incompreensível a posição da maioria parlamentar, que recorreu a meros argumentos regimentais para inviabilizar uma análise destas mensagens.

Mário Centeno é, hoje, um político sem credibilidade, um ministro no qual já não se pode confiar. Os resultados da política financeira deste governo podem ou poderiam até ser bons (eu creio que apenas não são maus, pois seguem uma tendência que já vinha do passado), os resultados sociais podem ser bons (aqui estou de acordo). Mas, se a base do sucesso financeiro dum país é a sua credibilidade, quanta resta ao ainda ministro das finanças?

“Mente mas faz obra”, a segunda afirmação está negada pela primeira.



Luís Novais
                

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

BRASIL, VITÓRIA DO ESPIRITO SANTO, DITADURAS E BALÕES DE ENSAIO



De entre esta classe política, uns passariam facilmente para o lado dos militares e, em ditadura, com censura e magistrados manietados, ser-lhes-ia fácil que, à lavagem de dinheiro, se siga a lavagem de imagem. Outros seriam as "vítimas", obtendo facilmente asilo político num país ocidental, com as contas recheadas e livres de qualquer fiscalização.

Cerca de 260.000 habitantes, localizada na região mais rica do Brasil, boas praias, um aprazível balneário para a classe média e apenas a uma hora de avião das megapolis Rio de Janeiro e São Paulo. Senhores passageiros, bem-vindos a Vitória do Espírito Santo… uma cidade que, pelo outro lado, tem a violência contida de qualquer cidade média com grandes diferenças sociais. Numa palavra, eis o balão de ensaio perfeito para quem queira fazer uma experiência sobre o resultado político duma explosão da violência.

A história é conhecida. No fim-de-semana passado alguns familiares de polícias colocaram-se frente às comissarias, impedindo os agentes de sair para as ruas. Exigem um aumento salarial de 100% e, com esta estratégia, contornaram a ordem constitucional que nega às forças da ordem o direito à greve.

Com os agentes fora de combate, instalou-se o caos e a violência: Tiroteios constantes, saqueio de lojas, de residências e perto de cem mortos em apenas quatro dias.

Falei com alguns moradores locais que desde domingo já reclamavam a presença imediata do exército nas ruas, um pedido que foi secundado pelo governador em exercício. Segunda-feira chegaram os primeiros mil soldados, mas as autoridades locais já estão a reclamar por mais.

Os adeptos da teoria do caos dirão que tudo foi uma sequência de acontecimentos não previstos e não previsíveiss. Por seu lado, os cultores da conspiração tendem a procurar a mão por detrás do boneco.

Casualidade ou planeamento maquiavélico, as consequências poderão ser as mesmas, e o que se está a passar em Vitória pode facilmente provocar-se em São Paulo ou no Rio. Se, destas duas metrópoles, tudo se estendesse a duas ou três cidades de dimensão média-grande, como são Belo Horizonte, salvador ou Porto Alegre, criar-se-ia um caos nacional, ou seja, o ambiente para que os cidadãos peçam ao exército que tome conta da situação. Nestas condições, facilmente um general-salvador-da-pátria quebra a espinha dorsal duma democracia minada pela corrupção.

Todos os crimes precisam dum motivo, e motivos não faltam. Em primeiro lugar, uma ditadura militar poderia interessar aos donos do país, uma aristocracia empresarial assente na finança, na indústria e na construção, que sempre viveu dum protecionismo que, em aliança com políticos corruptos, lhe garante ganhos fáceis. Para eles, a Democracia é descartável e, inclusive, incomoda-os ter de discutir na rua os seus projetos de “desenvolvimento”, as suas contaminações ambientais, os seus crimes contra os direitos das populações nativas. Como se começa a ver, um regime com liberdade de expressão e independência do poder judicial, já não lhes oferece mais do que a prisão.

E o que dizer duma classe de políticos que se enquistaram no sistema? Os escândalos de corrupção corroem o edifício institucional de que vivem, e tudo lhe está a correr mal desde que não funcionou essa manobra de diversão que foi destituir Dilma Roussef, uma das poucas que tem as mãos limpas. De entre esta classe política, uns passariam facilmente para o lado dos militares e, em ditadura, com censura e magistrados manietados, ser-lhes-ia fácil que, à lavagem de dinheiro, se siga a lavagem de imagem. Outros seriam as "vítimas", obtendo facilmente asilo político num país ocidental, com as contas recheadas e livres de qualquer fiscalização.

Falo com alguns amigos brasileiros e sinto esse ambiente, essa ideia de que a Democracia que têm não se consegue reformar a si mesma. Muitos vivem a ilusão de que uma ditadura seria menos corrupta, esquecendo-se que é graças à liberdade de expressão e à independência do poder judicial que a corrupção está a ser atacada. Entre perder o coração com anestesia, ou o dedo a sangue frio, alguns parecem inclinados para a primeira opção.

É por isso que estou muito atento e preocupado com o que se passa na cidade de Vitória. A situação em que está o  Brasil não é muito diferente da de outros países, não só da América latina. E aí, em vez dum balão de ensaio, teríamos um efeito dominó…



Luís Novais