domingo, 12 de novembro de 2017

OCIDENTE EM CRISE



Esta é a crise que enfrentamos. Uma crise que se mascara de várias roupagens, veste-se aqui de crise económica, ali de crise de valores, acolá de crise social. Mas, afinal, por muitas diferentes roupas que lhe vistamos, é uma e única: Uma crise filosófica; esses mesmos fundamentos filosóficos que nos permitiram chegar aqui, entraram num curto-circuito que não estamos a conseguir resolver.

Com uma clara influência das leituras ávidas que sempre fiz dos livros de António Damásio, que tenho em Portugal com pena de não os dispor na minha biblioteca peruana, percebi que a característica filogenética distintiva  da nossa espécie é essa capacidade única que temos: A consciência do eu, baseada naquilo a que o próprio Damásio chama “memória autobiográfica”.

Somos a nossa memória e somos o personagem “eu” que, graças a ela, criamos. Todo o nosso corpo é constante mudança, a matéria que nos compõe é renovação permanente e grande parte dela não era “nós” há uma ou duas semanas. Mas continuamos a ser “eu” e, ao sermos “eu”, parimos o “outro”. Cria-se uma fronteira entre o "mim" e o "não mim", a unidade cósmica perdeu-se no meio da evolução que atingimos.

A mitologia sempre procurou resolver este drama, umas vezes encontrando nele um castigo que temos de padecer, para um dia, redimidos, voltarmos ao eterno absoluto. Que é o jardim do paraíso? O que é, se não essa unidade perdida? Essa consciência de quem se atreveu a morder o fruto do conhecimento e, mordendo-o, tomou consciência de si. Adão cobriu-se de Eva e Eva cobriu-se de Adão, porque Adão percebeu que Adão não é Eva e Eva percebeu que Eva não é Adão.

Noutros mitos, Prometeu expia a culpa universal porque foi ele quem deu a luz à humanidade, a luz,  eterna metáfora do conhecimento e da consciência. Essa mesma culpa que será, depois, expiada também por esse outro grande personagem histórico que é Cristo.

Noutras latitudes, os nativos shipibas, da Amazónia, são conhecidos pelas linhas que traçam em todos os seus utensílios, em todos os seus tecidos. Eles creem que o mundo já foi um só todo, unido, sem separação, e essas linhas são a sua eterna procura da união perdida.

Quando entramos na filosofia, pensemos como, na nossa civilização ocidental, o problema foi criteriosamente resolvido por Platão. Somos unos e divididos, divididos na matéria, que é fonte de falsidade, unos e universais nesse mundo das ideias, onde reside a verdade. E é por isso que, para Sócrates, o conhecimento é um lento despertar, um exercício da recordação que trazemos desse mundo que nos transcende e donde viemos. Em Fédon, Sócrates está feliz porque vai morrer, já que, morrendo, acredita que irá regressar à eterna Verdade.

A transcendência e a Verdade universal que aí se encontra, são os dois pilares da sociedade ocidental. Buscamos a verdade porque acreditamos na transcendência. Nenhum sistema ocidental deixou de crer nisso, ainda que tenham variado os modelos e as liturgias para alcançar esse eterno absoluto.

A aventura dos sentidos que foi o renascimento e, posteriormente, o positivismo que se vai paulatinamente afirmando no século XIX, apenas momentaneamente refreado pela reação romântica, vão criando um problema de difícil solução. Já Descartes (1596-1650) o escancarou, quando foi incapaz de encontrar coerente resposta para o contacto entre res cogita e a res extensa. Esse ponto de união seria a busca obsessiva duma geração de pós-cartesianos, que incluiu o faustoso Leibnitz (1646-1716) e o humilde Espinoza (1632-1677). Mas eram respostas insuficientes e a quase infantil teoria Leibnitizana seria, e bem, até ridicularizada no “Cândido” de Voltaire (1694-1778).

Não compreendemos a importância de encontrar uma resposta, se não nos consciencializamos de que qualquer civilização nasce a partir da solução que encontra para o problema filogenético humano, e é por isso que nenhuma se  mantém se deixa de poder suportar-se nesse pilar fundador  que, no nosso caso, é precisamente aquele que Platão cimentou: A transcendência, que reúne o que se separou, e a Verdade que daí resulta.

Nietzche (1844-1900) diria que o cristianismo é platonismo com Deus, e o crescimento cristão no ocidente, numa altura em que o próprio império que o expandiu estava em risco de desagregar-se, como viria a suceder, explica-se pelo caldo cultural em que se tornou num modelo religioso, num modelo de vida e até num modelo de racionalidade. Porque isso é certo: Desde os áticos que o racionalismo se impôs no ocidente e o primeiro desafio da novel religião foi unir pontas que pudessem ligar racionalidade com religiosidade, tarefa que se empreendeu desde São Justino (100-165), com picos sublimes, como aqueles que atingiram Santo Agostinho (354-430) ou São Tomás de Aquino (1225-1274). Desde esses primórdios que estão presentes os modelos platónicos, desde eses primórdios que se procura resolver os respetivos problemas que ficaram em aberto e que se empreende uma síntese entre o mundo racional e o religioso. Sem que os primeiros filósofos cristãos tivessem feito esse esforço, a nova religião jamais atingiria aquele patamar que as elites exigiam para aderirem a algo que, de contrário, seria visto como meramente plebeu e fruto da ignorância.

Se fizermos uma ponte entre a medieval questão dos universais, e a capacidade de Kant (1724-1804) para resolver o paradoxo do absoluto e do contingente, percebemos que foi o professor de Koningsberg quem deu ao século XIX as bases filosóficas essenciais para que pudesse seguir o método científico como nova liturgia de chegada, ou de aproximação, a uma verdade transcendente, condição sine qua non para que o ocidente prosseguisse, sem perder o contexto dos seus pilares fundadores.

Entretanto, muitas coisas foram mudando e, nessa incessante busca pela transcendência, fomos chegando a outras conclusões. A primeira, que de uma mesma realidade se podem fazer diversas “verdades”. A perspectivação modernista, que inclui os ângulos múltiplos de Picasso (1881-1973), ou o desdobrar de personalidades de Pessoa (1888-1935), têm esse significado, tendo-se chegado a extremos de negação dum sentido para tudo, na orgia dadaista, ou no refugio dentro dum mundo interior, subjetivo, na loucura de Dali (1904-1989).

Mas a voragem não ficava por aí. Chomsky (1928 - ) mostrou bem como as técnicas de comunicação começaram a criar um abismo entre o real e o percepcionado, e como a manipulação da mensagem podia criar um real manipulado. E eis que começamos a entrar de frente na angústia pós-moderna, uma crise mental de grandes proporções, se tivermos em conta que esta perda de convicção numa verdade que seja em si mesma, não surge numa civilização qualquer, se não naquela que desenvolveu 2.500 anos de pensamento tendo-a como base para a resolução do mais humano dos problemas, a consciência de nós, com a consequente desfragmentação da unidade cósmica.

Mudo de parágrafo, para dar às frases que se seguem o destaque que lhes quero dar, uma espécie de perspectiva do problema da actualidade: Foi a crença na transcendência que nos obcecou pela procura de uma verdade absoluta, e foi essa procura que nos levou a concluir que a verdade é que a transcendência não existe e, consequentemente, nem sequer a verdade ela mesma.

Esta é a crise que enfrentamos. Uma crise que se mascara de várias roupagens: Veste-se aqui de crise económica, ali de crise de valores, acolá de crise social. Mas, afinal, por muitas diferentes roupas que lhe vistamos, é uma e única: Uma crise filosófica; esses mesmos fundamentos filosóficos que nos permitiram chegar onde chegamos como civilização, entraram num curto-circuito que não estamos a conseguir resolver. E é por isso que andamos perdidos, em busca de novos absolutos, de novas morais que cada grupo ou micro-grupo procura impor absolutamente. O politicamente correto e as vestes que se rasgam contra aqueles que não o seguem, feminismo, nacionalismo, novas religiões, vegetarianos, ascetas, radicais dos direitos animais, neo-espiritualidades, micro-causas, bem intencionadas, mas agigantadas como se fossem o absoluto fundamento... Tudo isto são procuras desesperadas de novos universais, tudo são substituições de um algo que sentimos ter perdido sem que tenhamos bem consciência de quê. Por fim, tudo nada resolve, porque somos uma civilização de absoluto absoluto, e quem assim nasce não se reencontra em parcelas absolutamente emparceladas.

Precisamos urgentemente de voltar aos fundamentos. Precisamos urgentemente de sair da orgia tecnológica em que nos afundamos, para debater o que é ser-se humano e o que é ser-se parte duma civilização. 

Terminemos com uma metáfora. Enquanto em Lisboa se organizava um evento superficial chamado Web Summit, com todo o impacto que significativamente possa ter, em Abrantes fazia-se um Festival de Filosofia. Quantos não souberam do primeiro, e quantos souberam do segundo?



Luís Novais


Foto: A Expulsão do paraíso, Capela Sistina.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

ENSAIANDO VISÃO



O Peru é assim,. Vamos por uma serra de nós perdida, mas que sabe de si. Na esquina dum monte, encontramos uma comunidad campesina encalavrada nos maciços, onde os lençois da terra arável que é de todos, são entreges em usufruto a cada família para que dela retire sustento, mantendo-se o tê-la de todos: dos que viveram, dos que vivem e dos que viverão. Da vontade coletiva, nascem também empresas comunitárias, com decisões tomadas em assembleias de todos os comuneros. Estamos na comunidad de Pincahuacho, em Apurimac, e foi dessa vontade coletiva que nasceu este hotelzinho, com banhos termais, mantidos das águas quentes e ferrosas que brotam do coração andino. 
Só quem nunca assistiu às assembleias de comuneros, amplamente participadas, onde se partilham sabedorias que ancestralmente se renovam, pode afirmar sem tremer que apenas temos essa via económica e social que, por nossa ignorância de mundo, nos acreditam ser a única... Se uns ensaiam cegueira, outros fazem visão. 
“Há mais coisas no céu e na terra do que imagina a tua vã filosofia, Horácio”... viaja de sentidos abertos, Horácio, e enche-te de sentir.

domingo, 5 de novembro de 2017

CANTAM HOSANAS CELESTES PARA SI, ACENDEM FOGUEIRAS E MASTURBAM-SE NOS OUTROS



Não se entende aqueles que, por um lado, querem a emoção cristã e a razão kantiana para si, ao mesmo tempo que o ódio de Torquemada com a razão de Maquiavel, para os outros.

Tenho assistido a tantos debates contraditórios sobre a questão catalã, que sinto necessidade de fazer algumas precisões. Não há maior falta do que aquela que cometetemos contra nós mesmos, contra o nosso pensamento, contra as nossas convicções. A nossa moral é o princípio máximo da soberania do “eu” enquanto ser consciente, livre e autónomo. E é por isso que o maior dos crimes é o que cometemos contras as nossas convicções, crenças, razão e moral. Dostoievski, sempre ele, ilustrou esta ideia de forma sublime em “Crime e Castigo”.

Hoje mesmo debatia com alguém que, candidamente, defendia ter Espanha feito muito bem em impor o "Estado de Direito" aos independentistas catalães, já que tudo mais não seria do que o funcionamento da justiça. Expliquei-lhe as tristes pontuações que o reino dos Bourbons tem no que respeita à independência dos tribunais, o que aliás está bem visível na forma como o poder executivo se atreveu a antecipar a decisão dos juizes. Falei-he também no criminoso caso GAL e que, no Peru onde vivo, há um ex-presidente que está preso por uma situação semelhante, enquanto Filipe Gonzalez se passeia alegremante e tem a desfaçatez de tomar posições públicas sobre a Catalunha e outros casos.

A resposta que recebi gelou-me o sangue: “GAL – A operação Luso-Espanhola que pôs a ETA de joelhos” (não comento a referência a Portugal, que deve ser uma forma de incluir-se na gesta). A resposta foi óbvia: Quem assim pensa não pode usar argumentos de Estado de Direito contra catalãoes que têm as mão brancas, ao mesmo temp que defende ações ilegais e criminosas, que estão a milhas da margem do Estado de Direito, praticadas por governantes que ficaram com as suas tintas de sangue.

A questão é muito simples, todos precisamos de valores fundamentais e, quando não os seguimos, o primeiro crime que praticamos é contra nós própios. Não somos de ferro e falhamos, mas sei bem quais são os meus: sou emocionalmente cristão e racionalmente kantiano. Emocionalmente, jamais me renderei ao “anti-cristo” e, na razão, Maquiavel nunca conduzirá a minha moral.

São estas firmes convicções que me fazem nortear as causas que abraço. Sou pelos Direitos Humanos, sou pela “Democracia” (que é muito diferente das democracias, pelo menos de algumas) e sou pela dignidade humana, incluindo a justiça social.

Direitos Humanos, Democracia, Justiça Social, eis as sagradas constituições. Todas as que daqui não partam, são inconstitucionais. Como humanidade temos de nos pôr de acordo no essencial, e é a partir daí que podemos e devemos disfrutar das saudáveis diferenças.

No mínimo, pede-se coerência. Não se entende aqueles que, por um lado, querem a emoção cristã e a razão kantiana para si, ao mesmo tempo que pedem o ódio de Torquemada com a razão de Maquiavel, para os outros.

Estes são os piores que temos: Cantam hosanas aos céus onde sonham chegar, ao mesmo tempo que acendem fogueiras assassinas e se masturbam no outro!


Luís Novais 

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

OBVIAMENTE, DEMITO-ME. A carta da ex-ministra e a situação a que chegamos.


Sabemos, agora, quantos portugueses pagaram pela partidarização do aparelho de Estado, uma doença que nos tem vindo a corroer e que, infelizmente, é transversal: não é nem foi exclusivamente induzida pelo atual primeiro-ministro.

Logo a seguir à tragédia de Pedrógão pedi, insistentemente, que me libertasse das minhas funções e dei-lhe tempo para encontrar quem me substituísse, razão pela qual não pedi, formal e publicamente, a minha demissão”.

A carta com que Constança Urbano de Sousa se demite, revela uma situação demasiadamente má para ser verdade. A argumentação que usa, não difere muito daquela que foi usada por quase todos os que, nos últimos tempos, defenderam a sua saída, por óbvia falta de autoridade. “Não tinha condições políticas e pessoais para continuar no exercício deste cargo”, estas palavras não são proferidas pelos que expressaram esta mesma ideia, alguns desde Pedrogão Grande, mas pela própria Constança Urbano de Sousa. Desta vez, “tem de aceitar”, quase suplica!

Com esta carta, aquela que, até hoje, foi responsável pela pasta da Administração Interna, iliba-se de qualquer responsabilidade pela trágica situação a que chegamos em Outubro, uma responsabilidade que recai agora e inteiramente na teimosia do próprio primeiro-ministro. “Dei-lhe tempo para que me substituísse”, diz, referindo-se ao período posterior a Pedrogão Grande.

Sabemos então que o país não só estava com um comandante de proteção civil interino, mas que interina era também a própria ministra, metida num limbo político enquanto aguardava que António Costa lhe nomeasse sucessão. E isto aclara as causas da descoordenação, da incapacidade para responder à situação no terreno e, até, o famoso desabafo relativo à ida de férias.

Esta ausência real de autoridade política em exercício, explica também muitas das situações que estiveram na origem do drama. Explicam que ninguém tivesse decidido alargar o período de alerta, apesar das óbvias condições climáticas. Explica que apenas tivéssemos 18 meios aéreos, contra os 48 de 15 dias antes. Explica que os postos de vigilância estivessem vazios porque ninguém considerou que, dada a situação, se deveria ter alargado o contrato com os vigilantes… Todas estas decisões podem e devem ser tomadas, mas exigem comando e decisão política, e já sabemos que na Proteção Civil tínhamos um interino e à frente do ministério, também.

Mas além de tudo isto, foi-nos revelado algo ainda mais terrível: A substituição dos comandantes de proteção civil foi feita dois meses antes de começar a época de incêndios, e temos mais do que razões para concluir que o critério das escolhas não foi a competência, mas a proximidade político-partidária (ver aqui).

Numa entrevista ao Expresso, o presidente da Câmara de Viseu denunciou a inoperância do novo comandante distrital, um dos 13 que entraram em Abril deste ano, depois da exoneração dos anteriores. Tudo isto entre diversas outras mexidas na estrutura organizacional, com escolhas que recaíram em algumas pessoas sem currículo pessoal, mas com currículo partidário.

Aliás, o melhor exemplo desta politização foi a nomeação do próprio Presidente desta estrutura, Joaquim Leitão, o que na altura gerou protestos. Em 2005 tinha sido adjunto no Ministério da Administração Interna, quando António Costa era ministro, um ano depois, com o atual primeiro-ministro no mesmo cargo, foi nomeado segundo comandante na Autoridade de Proteção Civil e em 2008, como presidente da Câmara de Lisboa, nomeou-o comandante do regimento de Sapadores Bombeiros. Conclusão: Claramente não foi uma escolha da ministra mas do primeiro-ministro e, quanto às restantes mexidas,  temos motivos para crer que foram decididas da mesma forma e, até, com intromissão das estruturas partidárias locais.

Num artigo que escrevi recentemente, a propósito da assombrosa entrevista de José Sócrates, salientava que um dos maiores custos dum corrupto é subverter a hierarquia das opções: As mais rentáveis para o decisor, em detrimento das mais necessárias para o país. Concluía que, em junho, 65 portugueses tinham pago o respetivo preço da pior forma. Sabemos, agora, quantos portugueses pagaram também pela partidarização do aparelho de Estado, uma doença que nos tem vindo a corroer e que, infelizmente, é transversal: não é nem foi exclusivamente induzida pelo atual primeiro-ministro.




Luís Novais

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

OPERAÇÃO MARQUÊS E CUSTO DA CORRUPÇÃO


Não perguntemos quanto recebem os corruptos, que isso é o menos. O grande e verdadeiro custo é o de opções megalómanas e desnecessárias, o de preços inflacionados, o da total ineficácia e esse tendencial descrédito dos cidadãos na Democracia que é, apesar de tudo, a nossa melhor proteção. Um desses maiores preços foi cobrado há três meses, pagaram-no 65 portugueses.

No Peru, onde vivo, há também um grande debate em torno do cancro da corrupção. O país é uma das vítimas do escândalo lava-jato, que teve repercussões em toda a América Latina. Neste momento tem dois ex-presidentes presos, um fugido no estrangeiro e com mandato de captura internacional, outro que está a ser investigado e nem o atual escapa às suspeitas. Para que se tenha uma ideia da dimensão, corre-se o risco de ter 36 anos de presidências atrás das grades e, entre ex-governantes, governadores regionais e alcaldes (presidentes de câmara), já se perdeu a conta a quantos estão presos.

Não surpreende, portante, que todo o país exija medidas concretas e que a sociedade civil tenha iniciado um intenso debate sobre o tema.

Recentemente, estive num debate sobre esta questão, no qual participaram o presidente da confederação patronal, o defensor del Pueblo (espécie de provedor de justiça) e o Prof. Juan Mendoza, um economista e académico que se dedica a investigar o tema.

A intervenção mais interessante foi a deste último, que denunciou o real custo da corrupção, alertando para aspetos que muitas vezes ficam esquecidos. “O verdadeiro preço para um país – disse – não é o valor direto que recebe o corrupto, mas a ineficiência imediata”. Esta é uma constatação que faz todo o sentido; o modus operandi do corruptor não é a inflação inicial do preço que até costuma ser inferior ao da concorrência, mas a certeza de que assinará adendas contratuais por custos supostamente imprevistos e por obras suplementares. Além disso, sabe que não vai ser devidamente fiscalizado e tudo isto provoca uma tremenda distorção concorrencial, que gera um custo muito mais elevado do que o simples valor recebido pelo político de serviço.

Outro problema, disse, é que a corrupção distorce as prioridades, levando o decisor a optar pelas iniciativas que lhe são mais rentáveis e não pelas mais necessárias. Juan Mendoza deu o exemplo da construção da via interoceânica que liga o Peru ao Brasil, construída pela Odebrecht no tempo o presidente Toledo, o tal que está prófugo por suspeitas muito fundamentadas de ter recebido 15 milhões de dólares por este projeto. “Nesta estrada circulam menos de 2% das exportações do Peru para o Brasil, no entanto o seu custo final será de 4,5 mil milhões de dólares”, disse. Se considerarmos que 50% das crianças do país sofrem de desnutrição crónica, com graves consequências para o seu desenvolvimento cognitivo, percebemos a dimensão do preço que pagamos pelas decisões dum político corrupto.

Relacionado com a questão da ineficácia, lembrou ainda o custo de afastar as empresas honestas, que sabem não ter hipóteses num mercado corrompido e preferem ir trabalhar para outros lugares.

Mas há uma questão sistémica gravíssima que está relacionada com uma entrevista que recentemente fiz ao líder da Amnistia Internacional: A descrença nos políticos leva os eleitores a escolherem outsiders demagogos e impreparados, como é o caso de Trump nos Estados Unidos, ou Duterte nas Filipinas. “Quando os cidadãos estão descontentes, é fácil o aparecimento de líderes populistas com propostas alternativas que põe tudo em causa”, respondeu-me.

A corrupção é um problema de todos os sistemas políticos. Apesar de tudo, nos democráticos, que têm imprensa livre e autonomia do poder judicial, é muito mais fácil que se descubra e que se julgue imparcialmente.

Os escândalos a que temos assistido, levam muitos cidadãos a perderem confiança no regime, predispondo-os a serem demagogicamente conduzidos à defesa de sistemas totalitários, que são por norma ainda mais corruptos. O que os políticos e empresários desonestos põe então em causa, é a própria Democracia, a liberdade de imprensa e, consequentemente, os Direitos Humanos.

Digo isto a propósito da contabilidade que se tem feito dos benefícios supostamente (ou mais do que supostamente) recebidos pelos implicados na operação Marquês. Esta acusação saiu quase ao mesmo tempo que se concluiu o inquérito à tragédia de Pedrogão Grande. Enquanto numa notícia víamos José Sócrates a defender a construção da linha de TGV, noutra a Comissão de Inquérito falava de 65 mortos, enquanto numa sabíamos que o contrato com o Grupo Lena era blindado, noutra falava-se dum serviço de proteção civil absolutamente descoordenado, numa do apoio do Estado a um banco durante uma OPA, noutra que o SIRESP não funcionou e é obsoleto…

Por isso, não perguntemos quanto recebem os corruptos, que isso é o menos. O grande e verdadeiro custo é o de opções megalómanas e desnecessárias, o de preços inflacionados, o da total ineficácia e o tendencial descrédito dos cidadãos na Democracia que é, apesar de tudo, a nossa melhor proteção. Um desses maiores preços foi cobrado há três meses, pagaram-no 65 portugueses.



Luís Novais

Foto: Klinkim


quarta-feira, 11 de outubro de 2017

"MARIANELA" DE PÉREZ GALDÓS, UMA OBRA QUE SURPREENDE



Rompendo com os modelos literários da Europa Ocidental do seu tempo, “Marianela” vai muito além da novela social e de costumes, aproximando-se da literatura russa coeva. Conduz-nos a uma profunda reflexão sobre a condição humana, sobre o “eu” na sua relação com o “outro”, o contingente e o absoluto, os conflitos éticos duma sociedade que não tem a moral conciliada com o conhecimento. Além disso, antecipa tendências literárias, levantando angustias que nos surgirão com o período modernista.

A cegueira é uma das metáforas mais exploradas nas diferentes literaturas, incluindo a mitológica. Desde Prometeu que a oposição entre ver e não ver nos ficou como metáfora do conhecimento e da consciência. Oferecendo a luz à humanidade, Prometeu foi agrilhoado por Zeus, castigo merecido porque a capacidade para ver, para conhecer, era um poder quase tão grande como o do próprio pai dos deuses.

Também na tradição judaica, a primeira criação é a luz. Foi por se terem atrevido a comer o fruto do conhecimento, que Adão e Eva ganharam consciência de si e, consequentemente, vergonha. Não menos cauteloso do que o deus grego, o judaico expulsa o casal do paraíso, temendo que alcancem agora a árvore da vida eterna, o que os tornaria seus semelhantes.

Platão recorreu à metáfora. Naquela caverna, o único que consegue escapar não pode mais viver aí, porque, tendo visto a luz, os olhos com que a viu não vislumbrariam na penumbra, e também porque os parceiros de cativeiro o considerariam cego e blasfemo. 

Outras vezes, a metáfora é usada num sentido inverso. Édipo cega-se para ser livre: Tem de ver apenas o seu interior, se quer fugir a um destino que corre fora de si, que o determinou e que o conduziu à tragédia.

Por cá, também o binómio luz-trevas foi usado como sinónimo de conhecimento ou ignorância. Numa das suas disposições combativas e otimistas, escreveu Antero dirigindo-se ao poeta e jornalista Guilherme de Azevedo:

“Viva e trabalhe em plena luz: depois,
Seja-me dado ainda ver, morrendo,
O claro sol, amigo dos heróis” (“Mais Luz”)


O mesmo Antero que, num momento de resignação pessimista, escreveu “Fada Negra”:

Razão! velha de olhar agudo e cru
E de hálito mortal mais do que a peste!
Pelo beijo de gelo que me deste,
Fada negra, bem-dita sejas tu!

Bendita sejas tu pela agonia
E o luto funeral d'aquela hora
Em que eu vi baquear quanto se adora,
Vi de que noite é feita a luz do dia!

Saramago usaria o mesmo recurso. A cegueira branca é talvez aquela que não permite ver, nem o mundo de fora nem o de dentro, e é, por isso, a verdadeira, a total, a que ofusca os dois lados da caverna, o “outro” e o “eu”. A conclusão de “Ensaio Sobre a Cegueira” conduz-nos a uma ideia, que vem na mesma linha dos trabalhos de Chomsky sobre o controle das sociedades liberais: Pessoas que veem não vendo, vivem modelos que legitimam a exploração e libertam sem libertar.

“Marianela”
Em “Marianela” (1878), Pérez Galdós (1843-1920) entrou também de frente e em força na utilização desta metáfora, colando-se à caverna de Platão, mas utilizando-a duma forma menos óbvia.

Antes de entrar na obra, devo dizer que a literatura espanhola do século XIX era-me, e é, uma desconhecida, um desconhecimento que julgo afetar a generalidade dos portugueses. É curioso que acompanhamos a História e a cultura do país vizinho até ao término da guerra dos 30 anos, ou tão só até 1640. Tudo o que se passou depois, vai entrando num limbo que, após as invasões francesas, é quase total, com exceções óbvias para pequenos grupos de estudiosos. É um pouco como se as luzes de Paris, que ofuscaram a nossa geração de 1870, e que aqui chegaram à força do carvão e do comboio, continuassem a ofuscar-nos, negando-nos a luz para o que se passava numa Espanha que era então decadente e que, para os nossos intelectuais desse tempo, estava longe de ser modelo ou sinónimo de progresso.

Consciente desta falha, decidi que era hora de superá-la e aproveitei a Feira Internacional do Livro de Lima para me abastecer. Acabo de ler o primeiro de muitos livros que trouxe comigo, “Marianela”.

Para usar a mesma metáfora, o comentário que faço, é, assim, como as primeiras impressões de quem não viu durante anos, de quem começa a tatear com os olhos um mundo nunca antes conhecido. Seria talvez mais cauteloso não comentar esta obra antes de “honesto estudo com longa experiência misturado”, mas decidi-me pelo atrevimento: Talvez as primeiras impressões, as primeiras conclusões, as primeiras comparações, possam ser as menos preconceituosas e as mais genuínas. Do ponto de vista pessoal, também me servirá para mais tarde poder compreender o meu próprio percurso pelo conhecimento desta literatura, uma empresa para a qual a primeira leitura de Galdós me alentou.

A surpresa
Estava habituado às leituras do século XIX francês e inglês que, depois do sentimentalismo romântico, foram entrando de frente num positivismo de denúncia social, primeiro realista, depois naturalista. Do outro lado, conheço bem a literatura russa, a que mais aprecio, e, de entre esta, sobretudo a do mestre dos mestres que foi Dostoievski, percursor de, no mínimo, duas ou três gerações literárias. Trata-se duma escrita que penetrou a fundo na natureza das grandes questões humanas, indo muito além da crónica de costumes, então muito em voga na Europa ocidental. Uma crónica, ora ácida ora sarcástica, que além Báltico foi bem representada por Gogol, e aquém por Flaubert ou Balzac, Dickens ou Zola e, claro, pelo nosso Eça.

Sem que estivesse preparado para isso, Pérez Galdós faz-me a surpresa de conduzir a uma literatura das profundezas humanas, tão característica dos russos de seu tempo, mas contrária às correntes então vigentes na Europa ocidental.

Entrando na história
A história parte duma metáfora aparentemente simples. Marianela é a pobre órfã, criada de favor pela família dum capataz de mina. Foi desprezada desde sempre, e não teve outra educação que não fosse aquela que aprendeu por si mesma, observando bosques, montanhas e penedos. Dela dirá o Dr. Teodoro Golfin, o médico que, inadvertidamente, desencadeará a tragédia: “…és uma pessoa admirável, nascida para o bem mas desvirtuada pelo estado selvagem em que viveste, pelo abandono e pela falta de instrução”.

Desprezada pelo entorno, Marienela ama Pablo Penáguilas, o jovem cego de quem é guia, o único herdeiro do abastado proprietário Francisco Penáguillas.

Este jovem aparece como uma espécie de “Alegoria da Caverna” inversa: “Não vejo o mundo de fora, mas vejo o de dentro, e todas as maravilhas da tua alma foram-me reveladas desde que te tornaste na minha guia”, diz a Marianela (p 77).

Pablo, o invisual, é uma espécie do oposto de Marianela, a sensitiva. Pablo é belo, Marianela é feia; Pablo amado dentro da família, Marianela órfã e desprezada pelos adotantes; Pablo rico, Marianela pobre; Pablo, o cego que imagina a realidade desde o interior de si mesmo, Marianela, a sensitiva que gera ideias dispersas a partir da literalidade do que vê.

De onde nos vem o conhecimento?
Partindo desta dualidade, entramos na vertente mais abordadas na obra, que é a origem do conhecimento humano. “Desde que tenho uso da razão – diz Pablo durante uma caminhada com a sua guia - que o meu pai costuma ler-me todas as noites diversos livros de Ciências e de História, de artes e de entretenimento. Essas leituras e estes passeios, posso dizer que são a minha vida toda” (p 82). Quando os autores escrevem com claridade, diria ele a seguir, os livros “Contêm ideias sobre as causas e os efeitos, sobre o porquê do que pensamos e o modo como pensamos, e ensinam a essência das coisas” (p 83).

Avançando a partir daqui, surpreende-nos um livro contem em si todas as filosofias, desde as mais antigas até à modernista crise da racionalidade. Poderíamos discorrer capítulos e capítulos, onde abordássemos a relação entre “Marianela” e a clássica abordagem platónica, poderíamos entrar na medieval questão dos universais, no racionalismo cartesiano, no empirismo inglês… mas são talvez as questões e as respostas kantianas aquelas que surgem com mais força, talvez porque o próprio Kante é a sintese de todas estas correntes.

“Marianela” é escrito por volta de 1878, tinha Galdós 35 anos. Kant morreu 74 anos antes e as suas principais obras perfaziam 93 e 86 anos, nos casos respetivos da “Crítica da Razão Pura” e da “Crítica da Razão Prática”. A filosofia do professor de Konigsberg estava profusamente difundida e a influência direta já era a dos discípulos que procuraram suprir a brechas do enorme edifício teórico do mestre. Entre eles, Hegel, que morreu em 1831, quatro anos antes do nascimento do autor de “Marianela”.

Contemporâneo desta obra foi Karl Marx, cujo materialismo bebeu de Hegel, o mesmo que lhe permitiu considerar o homem como parte dum movimento universal que o transcendia e, como tal, apenas uma peça da dialética a que tinha de pertencer, sem ter o direito de dominá-la ou, sequer, capacidade para fazê-lo.

Em “Marianela” podemos encontrar as inquietudes que resultam de um Kant revisitado, observar os desenvolvimentos filosóficos que se lhe seguiram e encontrar as dúvidas surgidas com a crise da racionalidade, que rebentou vários anos depois da sua publicação. Esta obra de grande profundidade é, assim, uma espécie de ponte entre a racionalidade do século XVIII e a crise dessa racionalidade no século XX.

Um pouco de História da Filosofia
Tendo a ciência de ser simultaneamente universal e progressiva, até que surgisse a Filosofia de Kant lidou-se mal com a relação contraditória destas duas necessidades, aparentemente inconciliáveis. A universalidade, filha direta do pensamento medieval e de base teológica, lidava mal com o experimentalismo herdado do renascimento. Aparentemente, o eterno universal não rima com a inconstância evolutiva.

Já desde Descartes se sabia que esta questão estava irresoluta e nem o mestre do racionalismo moderno deverá ter acreditado na resposta glandular que deu, quando lhe perguntaram pelo ponto de encontro entre a res cogita e a res extensa. Os avanços de Leibnitz e sobretudo de Espinoza foram passos em frente, mas para os iluministas do século XVIII era já claro que algumas das conclusões de Leibnitz eram risíveis. Voltaire mostrou-o com um humor ácido em “Cândido”.

O problema agudiza-se se nos lembrarmos que, enquanto no continente se desenvolvia este racionalismo universalista, no reino Unido surgia um empirismo que redundou na negação de qualquer conhecimento universal e no mais radical dos subjetivismos.

Decididamente, havia cabos soltos que precisavam de ser ligados, e foi a isso que Kant (1724-1804) se dedicou

O problema da relação entre o universal e a mudança, foi o grande objeto da resposta que o filósofo de Konigsberg deu em “Crítica da Razão Pura” (1788): As noções de espaço e tempo existem a priori e não podem observar-se porque são tudo sendo nada, são formas interiores e sem conteúdo que nos dotam de capacidade para conhecer. Por outro lado, o mundo exterior fornece-nos um “caos de sensações” sintéticas, que será catalogado e transformado em conhecimento, graças a essas formas universais apriorísticas. A faculdade de conhecer seria, assim, uma espécie de biblioteca, onde a organização classificativa detém o carater universal apriorístico, e os livros catalogados em estantes são as sensações sintéticas, que entraram como caos e foram arrumados com um sentido. Estava criado o conceito de “juízos sintéticos a priori” e, duma penada, conciliavam-se 2500 anos de filosofias aparentemente inconciliáveis.

Resolvendo esta difícil equação, Kant conciliou a universalidade com a mudança, dotando o século XIX da ferramenta que lhe faltava para que se transformasse, como se transformou, no século da ciência. Se as elites desse período estavam certas de atingir a verdade e, até, o bem, graças à liturgia do método científico e ao primado da lei científica, isso deve-se ao pensamento daquele homem aparentemente obscuro, que pouco mais mundo conheceu do que a calçada que levava de sua casa à universidade de Konigsberg.

A personagem “sintética” e o personagem “á priori
Em “Marianela” encontramos muitos destes conceitos, e também as incertezas que já se geravam e que anunciavam a crise do racionalismo no século XX. Marianela, a personagem principal, é uma espécie de “caos desordenado”, sem forma, ela vê o mundo sem o organizar mentalmente, sem criar conceitos, sem lhe dar uma ordem. Cada observação é algo em si mesmo, que ela compara instintivamente com um outro algo e une numa espécie de bondade aglutinadora, materializada na ideia de beleza que lhe dá a Virgem Maria.

Num dos muitos passeios que dava com Pablo, este começa a falar dum livro que seu pai lhe leu, sobre o conceito de beleza. Não alcançando o conceito, Marianela precisou de concretizar: “…não será como um (livro) que tem o Padre Centeno, que se chama… As mil e não sei quantas noites?” (p 83) Pablo responde-lhe que não, que se refere ao conceito universal. Uma vez mais, a resposta de Marianela é sintética: “Como por exemplo a Virgem Maria (…) a quem não vemos nem tocamos, porque as imagens não são ela mesma se não o seu retrato” (p 84). A conversa continua, mas “Nela, pouco atenta a coisas tão subtis, retirava as flores das mãos do seu amigo e combinava-as pelas suas cores exuberantes” (p 84).

Fixemo-nos neste diálogo para traçar agora o perfil de conhecimento de Pablo. Referindo-se ao livro, diz o jovem cego que “O autor falava da beleza, e dizia que era o resplendor da bondade e da verdade, junto com muitos outros conceitos engenhosos e tão bem referidos e pensados que dava gosto ouvi-los” (p 83). É aqui que Marianela fala nas “Mil e não sei quantas noites”. A resposta ao sintetismo da jovem é apriorística: “Não é isso, tontinha; o livro fala da beleza em absoluto… Não serás capaz de entender a beleza ideal?... Claro que não entendes… Como hás de saber de uma beleza que não se vê, nem se toca, nem se apreende com nenhum sentido?” (pp 83-84).

Os exemplos poderiam multiplicar-se. Ao longo de todo o livro, Marianela é a parte sintética e Pablo a parte apriorística dos juízos sintéticos apriorísticos que Kant teorizou. Isto fica muito claro neste mesmo diálogo: Enquanto Pablo lhe fala de beleza, Marianela vê-a, ele fala do conceito, ela faz um ramo de flores exuberantemente coloridas... que ele não pode ver.

A forma universal como um Pablo cego analisa o mundo, deixa bem clara a sua incapacidade para entender algo fora dessa universalidade. Só assim se compreende que faça desabafos como, “…às vezes o que tem mais vista, vê menos” (p 86), ou, “O dom da vista pode causar grandes desvios… afasta os homens da compreensão da verdade absoluta”.

As faculdades que se complementam
Fruto desta complementaridade, entre Pablo e Marianela desenvolve-se uma ligação amorosa. É como se Galdós nos quisesse transmitir a ideia que não podemos viver apenas do universal, ou apenas do sintético. “Acabas de dizer mil disparates – diz-lhe Pablo – e eu, que conheço um pouco a verdade, o mundo e a religião, senti-me comovido e entusiasmado enquanto te ouvia. Sinto desejos de que fales dentro de mim”. A resposta deixa clara a complementaridade: “(sinto que) estou no mundo para ser a tua guia, e que os meus olhos não serviriam para nada se não servissem para guiar-te e contar-te como são todas as belezas ” (p 77).

Analisando o mundo apenas com base em conceitos, Pablo parece incapaz de estabelecer uma separação entre estes e o sintetismo do “caos de sensações”. Por isso não imagina possível que Marianela possa ser sensorialmente feia: “Prefiro não ver a tua beleza com os olhos, porque vejo-a dentro de mim, clara como a verdade que proclamo interiormente”.

O drama
O drama entra em cena pelas mãos do Dr. Teodoro Golfin, o oftalmologista que opera Pablo, devolvendo-lhe a visão. Intuitiva, Marianela compreende imediatamente o que isso significa: “Quem é a Nela? – pergunta-se – Ninguém. A Nela só é algo para o cego. Se os seus olhos se curam e me vê, caio morta… Ele é o único para quem a Nela não é menos do que os gatos e os cães”.

Entretanto, entra em cena Florentina, a prima de Pablo, ela sim dotada de uma grande beleza física e que os respetivos pais procuram casar. Desesperada, quando se inteira de que o cego recuperou a visão, Marianela foge, não quer que ele a veja e pensa no suicídio. É encontrada pelo Dr. Golfin a quem jura que Pablo jamais a verá:

“- E porquê?
- Porque (sou) muito feia… Pode amar-se a filha da Canela (a sua mãe) quando se tem os olhos fechados, mas quando se abrem e se vê a menina Florentina, não se pode amar a pobre e ridícula Marianela…” (pp 216-217)

O cego vê
Com um Pablo desperto para um mundo que nunca antes vira, Galdós conduz-nos de novo a kant, para quem o espaço e o tempo eram as duas faculdades apriorísticas que nos permitiam transformar em conhecimentos “o caos de sensações”. Tendo do espaço uma ideia que nunca observou, é precisamente a visão da tridimensionalidade aquela que tem mais dificuldade a dominar:

“As imagens entravam, digamos assim, pelo seu cérebro violenta e atabalhoadamente com uma espécie de investida brusca, de tal modo que ele pensava chocar contra os objetos; as montanhas distantes pareciam-lhe ao alcance da mão, e via os objetos e as pessoas que o rodeavam tal como se rapidamente pudessem cair sobre os seus olhos” (pp 227-228)

E é então que toma consciência da diversidade, do “caos de informação” que, entrando pelos sentidos, formam o conhecimento. “Tudo isto é belo e grandioso, ainda que me faça estremecer” (p 229).

O drama atinge o climax quando Pablo encara Marianela e, tendo-a idealizado bela, só realmente a reconhece quando esta estendeu “uma mão magra, morena e áspera, e tomou a do moço Penáguillas, que, ao sentir o seu contacto, estremeceu dos pés à cabeça e lançou um grito em que toda a sua alma gritava”. Afinal, a Marianela que aprioristicamente imaginou dotada de toda a beleza, era aquela criatura frágil e feia.

A jovem já não tinha qualquer papel neste mundo. Deu dois beijos na mão de Pablo “…e ao dar o terceiro, os seus lábios deslizaram inertes”. “Matou-a! Maldita seja a sua vista!”, gritou o Dr. Golfin.
Pablo recuperou a visão e, com a visão, a capacidade para encher o espaço e o tempo com as sensações do mundo, o mesmo papel que até aí era a missão de Nela. Quebrou-se a aliança: O jovem recuperou o que Marianela lhe dava, sem que ela tivesse reciprocidade, exceto por uma vaga e inconsequente promessa do Dr. Golfin, que prometia uma educação que a mudaria.

Anunciando outras crises
Como disse, vejo este livro como uma ponte entre as certezas que nasceram no século XVIII, que se tornaram dominantes no XIX, e as dúvidas e angústias do século XX, dominado pela crise da racionalidade. Essa ponte com o que estaria para vir, é estabelecida também pelo Dr Golfin, um médico crente na racionalidade, na Ciência e na capacidade para reformar o ser humano a partir do conhecimento.

É de tal forma assim, que o médico analisa Marianela como um fruto da falta de educação e pretende reformá-la. Num capitulo significativamente intitulado “Domesticação” (p 208), diz-lhe: “Pobre criatura, abandonada aos teus sentimentos naturais, sem instrução nem religião, sem nenhum apoio afetivo e desinteressado que te guie” (p 210). E conclui umas páginas depois:

“És uma pessoa admirável, nascida para o bem, mas desvirtuada pelo estado selvagem em que viveste, pelo abandono e pela falta de instrução, pois falta-te até o mais elementar!
(…)
Vou ensaiar em ti um sistema de educação… veremos se sei lapidar esse bonito diamante. Ah, quantas coisas desconheces! Eu descobrirei um novo mundo na tua alma, farei com que vejas mil maravilhas assombrosas que até agora não conheceste (…)” (pp 222). “Mas saberás tudo, serás outra. Deixarás de ser a Nela, prometo-te, para seres uma menina com mérito, uma senhora de bem” (p 224)

Esta fé do médico na força da educação científica para reformar a sociedade, expressa-a também numa conversa sobre Nela que tem com Florentina: “É um exemplo do estado a que chegam seres moralmente organizados para o bem, para a sabedoria, para a virtude, mas que pelo abandono e desdenho não podem desenvolver o potencial da sua alma (…) Não tem mais educação, além da que ela mesma se deu, como uma planta que se fecunda com as suas próprias folhas secas” (p 247).  

A fé do médico na educação fica claramente expressa na continuação deste diálogo. “…vamos trazê-la ao nosso século”, e “…é o mesmo que criar um novo ser” (p 249).

Mas este médico cheio de certezas na ciência e no papel reformador da educação, entrará em crise quando conclui que foi a sua “boa” ciência que conduziu àquela trágica morte. “Matou-a!”, exclamou para Pablo, “Maldita seja a sua vista!”, o mesmo é dizer que, maldito seja eu, maldita a ciência que quebrou essa harmonia.

É no decurso da trágica morte que as certezas do médico se transformam em crise: já não sabe o que sabe, já não sabe se a sua ciência conduz ao bem. “Não sei se morre de vergonha, de ciúme, de despeito, de tristeza, de amor contrariado. Singular patologia! Não, não sabemos nada…, sabemos apenas o que é trivial”. Florentina responde-lhe também com descrença: “Oh, que médicos!” A esta observação, Golfin contrapõe apenas um desabafo: “Não sabemos nada, conhecemos um pouco da superfície” (p 260).

 Ao longo da obra, o Dr. Golfin surge como um símbolo da modernidade. Ele é um homem que confia na capacidade da ciência para criar o verdadeiro conhecimento, para gerar o bem, e acredita na sua própria capacidade para agir sobre o mundo. Numa palavra, o médico é o produto acabado da filosofia kantiana: Alguém que uniu o absoluto e o contingente dentro de si mesmo e que, portanto, é profundamente livre.

Se Kant escreveu a “Critica da razão Pura”, onde desenvolveu uma teoria do conhecimento que uniu milhares de anos de teses filosóficas inconciliadas, escreveu também “Crítica da Razão Prática”, onde entrou no caminho da moral e da lei moral. “Age como se a tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal”, o imperativo categórico é uma espécie de átomo moral, a partir do qual estaríamos preparados para tomar todas as decisões.

No entanto, se Kant deixou brilhantemente resolvido o problema da relação entre o universal e o contingente, criou uma nova disfunção, que é a existente entre a moral, o imperativo categórico, e uma ação, dirigida por “juízos sintéticos a priori”. Ou seja, entre um agir dirigido pelo conhecimento da razão pura, e outro que se baseie na razão prática. A ciência, a grande ciência, a deusa do século XIX, podia afinal ser imoral!... e foi-o, como demonstraria a História.

Foi na constatação desta difícil conciliação que nasceu a Filosofia de Nietzche (1844-1900) e que se inaugurou a angustia modernista, tão bem representada em autores como kafka (1883-1924), James Joyce (1882-1941), o nosso Pessoa (1888-1935) e pelo percursor Oscar Wilde (1854-1900).

Conclusão
Rompendo com os modelos literários da Europa Ocidental do seu tempo, “Marianela” vai muito além da novela social e de costumes, aproximando-se da literatura russa da mesma época. Conduz-nos a uma profunda reflexão sobre a condição humana, sobre o “eu” na sua relação com o “outro”, o contingente e o absoluto, os conflitos éticos duma sociedade que não tem a moral conciliada com o conhecimento. Além disso, antecipa tendências literárias, levantando angustias que nos surgirão com o período modernista.



Luís Novais

Nota:
Usei a seguinte edição: PEREZ GALDOZ, Benito. MARIENELA. Alianza Editorial, Madrid, 2008 (primeira edição, 1878),. A edição que tenho é original em língua castelhana, optei por traduzir todas as citações.
A lei sempre foi feita pela História. Não conheço nenhum caso em que tenha sido ao contrário.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

FORÇA E DIÁLOGO NA QUESTÃO CATALÃ


Não é pela imposição que isto se resolve, já temos História suficiente para saber que a brutalidade gera brutalidade, que o ódio gera ódio, que o silenciamento conduz à revolta.

“Morte na Arena” foi o título da reflexão que escrevi no dia 3 de outubro, sobre a questão catalã. Manifestava a minha incompreensão diante da atitude radicalmente imperialista de Rajoy, assim como pelo secessionismo sem regras de Puidgemont. Num certo sentido, punha-me ao lado daqueles que, uns dias depois, se vestiriam de branco, apelando ao diálogo e ao compromisso.

As democracias maduras vivem dessa capacidade de estabelecer pontes, de assumir diferenças, procurar locais de encontro e, quando não é de todo possível, concordar que não concordam e encontrarem formas cordatas de saída. Os edifícios institucionais e legislativos blindados, que não permitem qualquer desvio a uma linha traçada e que criminalizam a discordância, são próprios, ou de ditaduras, ou de democracias débeis.

Compreende-se que a Constituição espanhola de 1978 fosse fechada. Afinal, o país via a seu lado um outro, Portugal, onde o processo de transição acabava de resultar dum período revolucionário gerador de uma grande instabilidade e de potenciais ajustes de contas, que afinal não se verificaram. A sociedade espanhola tinha bem vivo o trauma duma guerra civil sem limites e duma ditadura sanguinária. Nestas circunstâncias, é natural que tivesse temor de si mesma; qualquer brecha poderia ser como aquele pequeno furo numa grande represa.

Entretanto passaram 40 anos. Se, em quatro décadas, esta democracia não atingiu maturidade para permitir uma sociedade que negoceia, então têm razão os catalães mais independentistas por quererem construir a sua própria.

No discurso de hoje, Puidgemont começou por descrever o caminho que levou à situação atual: Uma constituição fechada, que foi aprovada como sendo o início duma mudança positiva, mas que, ao contrário, se transformou num monumento ao imobilismo. O estatuto catalão, amplamente negociado com Madrid, aprovado nos parlamentos nacional e autonómico em 2004, subscrito em referendo por 74% dos catalães, mas que um Rajoy, digno discípulo do caudillo, conduziu ao tribunal constitucional e conseguiu anular. Um referendo, o de 2014, sem caracter vinculativo, organizado por Artur Mas, então líder da Generalitat, que assumidamente não tinha outra consequência que não fosse auscultar o povo catalão, que teve 81% de votos a favor da opção por um Estado independente, mas que, apesar de não ser vinculativo, foi criminalizado e Mas condenado à inabilitação para exercer cargos elegíveis e a uma multa de 5 milhões de euros a favor do Estado espanhol…

Esta atitude de Madrid, não é duma Democracia digna desse nome,  muito menos a reação brutal com que se procurou evitar o referendo do dia 1 de outubro.

Por outro lado, neste processo, também Puigemont saltou todas as barreiras legais, também ele enfrentou e tampouco facilitou o diálogo, como deveria, por muito que a outra parte não desse mostras de qualquer abertura negocial.  Hoje porém, deu aquele passo que me parece ser o dos que estendem a mão e estão dispostos a conversar.

No discurso de hoje, o lider da Generalitat tinha três hipóteses:

                Primeira: Fazer tudo como ele mesmo e uma parte, talvez maioritária, da sociedade catalã querem, declarando a independência unilateral, sem importar-se com Espanha e com aquela outra parte da mesma sociedade catalã que não quer ir por essa via, dando-se o caso de que possa ser maioritária.
Segunda: Fazer tudo como Rajoy, a maioria dos espanhóis e um setor relevante ou maioritário da sociedade catalã querem, recuando em toda a linha, negando-se a si mesmo e humilhando os milhões de catalães que querem formar um estado independente, e que ainda agora foram já amplamente humilhados pelo comportamento abusivo de Madrid durante este processo
Terceira: Avançar um passo na direção que pretende, sem fechar a porta a uma negociação e, até, pedindo-a

Optou por esta terceira via, e defendo que ainda bem. Hoje está bem claro que Espanha tem um problema político que não se resume na Catalunha e que precisa de encontrar formas inteligentes para resolvê-lo, a bem da sua própria unidade ou, no mínimo, da convivência futura. E não é pela imposição que isto se resolve, já temos História suficiente para saber que a brutalidade gera brutalidade, que o ódio gera ódio, que o silenciamento conduz à revolta.

Não sei se esta Madrid de Rajoy estará à altura do momento histórico, tenho muitas dúvidas, mas espero estar enganado, assim como enganado acaba de provar Puigemont que eu estava em relação a ele mesmo. Estender a mão nestas circunstâncias não é sinal de debilidade mas de força. Oxalá que o outro lado não tenha a debilidade da força.



Luís Novais

terça-feira, 3 de outubro de 2017

MORTE NA ARENA. Castela e Catalunha: Crónica da imbecilidade humana


Custa acreditar. Um primeiro-ministro radicalmente intransigente, autoridades autonómicas que não recuam um milímetro, uma polícia estupidamente brutal, a rua que não se rende. E no fim, o rei, esse rei que podia ser rei real, e afinal é rei momo, incapaz de assumir a sua responsabilidade histórica, que pega na espada de matador e quer também dar uma estocada, nessa mesma arena onde já ficaram tantos, assim dos que foram para morrer e viveram, como dos que foram para matar e morreram.

Ninguém entendeu tão bem Espanha na metáfora duma corrida de touros como Hemingway. O toureiro e o orgulho do toureiro, o touro fero, o confronto brutal, onde se joga a vida e o sangue, literalmente. E por fim a glória de viver ou morrer, enfrentando o risco, morrer para viver ou viver para, orgulhosamente, morrer.

Noutros azimutes, Georges Bataille entendeu o significado antropológico dum conflito, onde a parte sacrificada se santifica, por deixar de ser parte, una, individual, para se emular no todo, no eterno plotoch primitivo, nesse holocausto em que, aos deuses, os Ulisses ofereceram latejantes carnes taurinas.

Voltando ao touro e ao toureiro: Não é viável o recuo, recuar é profano num ritual que se repete, olhos raiados em olhos raiados, em sangues que se vertem e se misturam, em tragédia que constrói o ser. Alguém tem de morrer, seja touro, glorificado pela bravura, seja toureiro, herói eternamente recordado porque à vista de todos deu vida para que todos sejam todos. Entre o touro e o toureiro estabelece-se uma aliança que não pode ser quebrada, que se quebra se uma das partes recua e desiste de destruir a outra, de aniquilar, dessangrar.

O que parece incompreensível na questão catalã, é isto. Como é que duas partes se enfrentam sem deixar margem de recuo, resquício de negociação, possibilidade de ambos darem um passo atrás para que ambos possam seguir vivos? Não, não lhes é possível: A vida é uma arena, um deles tem de morrer!

Não conseguimos entender o ponto a que se chegou  sem olhar para esta luta literal em que tantas vezes se transformam os metafóricos touro e toureiro.

Quanto aos fundamentos históricos, há-os para todos os gostos. Podíamos viajar à antiga Ampurias, num gesto semelhante ao recuo mitológico que nós portugueses fazemos a Viriato. Podíamos também considerar os séculos que vão do XI a 1734, data que a generalidade dos catalães considera a da perda da independência, o fim da guerra da sucessão entre Austrias e Bourbons.

Datas há-as para todos os gostos, havendo quem afirme que a Catalunha foi independente, frente a quem contradiga, com mesma tamanha certeza.

Não nos enredemos nesta discussão, que de tão secular e difusa, só muito levemente ajuda a explicar aquilo que se está a passar ali e agora. E ali e agora, é uma arena.

Centremo-nos no 30 de setembro de 2005 quando, depois dum intrincado processo entre o governo central e as tendências internas, o parlamento da Catalunha aprova o Estatuto Catalão, com os votos contra do Partido Popular (PP), esse partido a que, nesta história, assenta bem esse intransigente e orgulhoso personagem: El matador.

O novo estatuto entrou em vigor depois dum referendo onde obteve 74% dos votos. O texto final dava uma ampla autonomia à região, mitigada por uma prévia intensa negociação com o socialista Rodriguez Zapatero, primeiro-ministro de então, que teve de enfrentar o próprio partido para conseguir um acordo, criticado até por Filipe Gonzalez, o líder histórico.

Mas dos Zapateros não reza o sangue da arena e a arena ali estava, apelativa. O matador nunca desiste, o seu objetivo é fatal: matar ou morrer. Vencidos nas cortes, os populares juntam 50.000 apoiantes na Plaza del Sol, e um esfuziante Mariano Rajoy profere incendiário discurso:

"No hay más que una nación, la española, que formamos todos los españoles. Y no reconocemos más que un único poder soberano, cuyo propietario es el pueblo español entero". E conclui: "No hablamos el lenguaje antiguo de los derechos históricos, las soberanías medievales o los pueblos irredentos" (El País)

Depois destas palavras profusamente badaladas, Rajoy concretiza a estocada e recorre para o tribunal constitucional, apoiado em assinaturas, apoiado noutros organismos nacionais e também nalguns poderes regionais. A sentença sai a 28 de junho de 2010 e anula diversos artigos, alguns de carga afetiva, como os relacionados com a língua ou com o estatuto de nação (texto integral da sentença). Rajoy, o matador, rejubilou e recebeu uma ovação na arena.

Humilhados, mais de um milhão de catalães manifestam-se em Barcelona, sob um lema lancinante:  “Som una nació. Nosaltres decidim” (“Somos uma nação, nós decidimos”) (ver aqui). A espada não cruzou o coração, o confronto tinha de prosseguir.

A 9 de Novembro de 2014, depois dum acordo entre os partidos nacionalistas catalães, decorre um referendo, também este anulado pelo tribunal constitucional. Mas o matador Rajoy estava fragilizado pela crise económica e pelo escândalo de corrupção que rebentou em Janeiro de 2013 (ver). Até a própria coroa, afetada por diversos escândalos, enfrentava a abdicação de Juan Carlos I (19 de junho de 2014), pretexto para manifestações de rua onde se exigiu que o regime monárquico fosse referendado.

Nestas condições, o matador estava ferido. Era a hora dos líderes catalães assumirem o orgulhoso papel na arena, enfrentando o touro de Madrid com um referendo que, na prática, foi inconsequente por ser também declarado inconstitucional, mas que Rajoy não conseguiu impedir. Num resultado considerado transparente, o “sim” à independência obteve 81% dos votos.

Desta vez, a estocada, ainda que simbólica, acertou no matador. Os dois lados ainda se mantinham vivos e um tinha de morrer, cada um devia morte ao outro.

E assim chegamos ao primeiro de Outubro. O que parece incrível a olhos pouco acostumados ao sangue na arena, é que todos tenham dado o tudo por tudo, que todos se enfrentem, sem se oferecerem qualquer possibilidade de recuo. Animados pela meia vitória de 2014, os nacionalistas decidiram que era a hora de investir. Rajoy estava fortalecido pela retoma, tinha conseguido ultrapassar os escândalos de corrupção mais ou menos incólume, e contava com a certeza de um novo rei, aparentemente reforçado e comprovadamente fácil de manietar. Mas este primeiro-ministro já não era matador diante de touro, agora eram dois matadores frente a frente, e um tinha de morrer, era a Hora, era o tudo ou nada.

E o resultado foi o que estamos a ver: A intransigência nacionalista dum lado e, do outro, o obtuso cumprimento duma decisão judicial, feito com uma brutalidade que, em vez de matar o atacado, feriu talvez de morte o atacante.

Restava uma esperança: o rei. Um rei relativamente jovem, possivelmente sensível, capaz talvez de congregar. Filipe VI mantinha-se calado, sussurrava-se que prudentemente, que estava reservado para poder congregar, pacificar, juntar o que estava dividido. Era o discurso da sua vida, como o da vida de seu pai foi aquele que proferiu no dia 24 de fevereiro de 1981, salvando a democracia e legitimando a coroa.

Às 21:00 do 3 de outubro, os olhos estavam postos nas televisões, o próprio presidente da Generalitat catalã ainda não tinha aberto o jogo. O rei poderia ser de copas, reconhecendo aspirações, erros de parte a parte, chamando ao diálogo e pondo-se como penhor de um acordo a alcançar. Mas Filipe VI decidiu apenas ser mais um personagem nessa trágica arena onde alguém tem de sair morto, absolutamente morto: Acusa as autoridades catalãs de “uma falta de lealdade inadmissível em relação aos poderes do Estado”, acusa-os de “uma conduta irresponsável”, de terem vindo “a falhar, de forma reiterada, consciente e deliberada, no cumprimento da Constituição”. Quando entrou era de copas, quando saiu era de espadas, as espadas do matador, as daquele que não reconhece outro direito à outra parte, que não seja a derrota, total, fatal.

Do lado oposto, as respostas não se fizeram esperar: O rei já é visto como líder de fação. Quem esteve atento às reações, conclui que o único resultado deste discurso foi aumentar a radicalização das duas partes, todos se afastaram mais ainda, ninguém se aproximou. Pouco depois, Puigdemont afirmava à imprensa que iria declarar a independência, já estava mais ou menos claro que esta era a única via que lhe deixavam.

Provavelmente, Espanha perdeu Catalunha, por intransigência, por erros... meu Deus, que tamanhos erros! Mas atenção: ainda há vivos, a tragédia corre numa arena que continua à espera de mais sangue, tudo pode não ficar por aqui.

Custa acreditar. Um primeiro-ministro radicalmente intransigente, autoridades autonómicas que não recuam um milímetro, uma polícia estupidamente brutal, a rua que não se rende. E no fim, o rei, esse rei que podia ser rei real, e afinal é rei momo, incapaz de assumir a sua responsabilidade histórica, que pega na espada de matador e quer também dar uma estocada, nessa mesma arena onde já ficaram tantos, assim dos que foram para morrer e viveram, como dos que foram para matar e morreram.

É triste, é incompreensível, mas é Espanha e é Fiesta! Agradeço ao Mestre de Aviz.


Luís Novais


Foto: "Corrida", Picasso


segunda-feira, 11 de setembro de 2017

SÓ POR ESTA EXPOSIÇÃO, JÁ VALERIA A PENA VIR A LIMA. Em torno da exposição CHAVEZ 80 – Retrospectiva

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A exposição começa com uma escultura, 
representação tridimensional de uma
tela, feita com terra prensada.

De 1 de setembro a 18 de Novembro decorre em Lima a exposição comemorativa dos 80 anos do pintor peruano Gerardo Chavez. É uma oportunidade única de assistir ao vivo a um percurso artístico singular, e também um testemunho dos momentos mais marcantes da contemporaneidade.




Não há melhor forma de entender um artista, do que vendo-lhe a obra numa sucessão cronológica, e não há melhor forma de ver uma obra, do que ao vivo, dispensando livros e catálogos. Os momentos em que o podemos fazer são raros e, se o artista é grande, quando acontece tomamos total consciência do caminho que percorreu e de como, nesse caminho, temos uma marca indelével dos passados, dos presentes que viveu e dos futuros que anuncia. É então que os grandes dramas humanos, as perguntas universais, “quem sou”, “que faço”, qual o “sentido?”, se nos desfilam obra a obra, sendo cada uma um passo mais adiante ou, por vezes, um retrocesso momentâneo, provocado talvez pelo grande vazio que nos dão as novéis respostas, destruidoras dum universo pessoal anterior, mas incapazes ainda de construir um sistema alternativo.

Até novembro deste ano temos o privilégio de ver a obra do pintor peruano Gerardo Chavez (Trujillo, Peru 1937), desde os seus primeiros esboços, em 1955, até à atualidade.

A primeira surpresa: Pintando na terra
A primeira surpresa acontece no átrio, antes de entrarmos no primeiro dos quatro pisos onde as mais de 200 obras estão expostas. É aí que começamos a ser confrontados por uma escultura e por um painel. Aquela, é uma espécie de tridimensionalidade deste, feita com peças que se encaixam e que são construídas com recortes de terra prensada. E é no próprio material escolhido que começa a arte: Tal como “somos pó”, tal como moldados no barro, as duas obras que abrem esta exposição nascem da terra; não é apenas a escultura, também o próprio painel é pintado sobre panos de juta cobertos com lama.

"Origenes" (2000) é o painel que abre a exposição. É pintado sobre terra, numa técnica única criada pelo próprio artista














Conhecer a origem para reconhecer o artista
Teríamos que conhecer Trujillo, a cidade onde Chavez nasceu, e conhecer-lhe a arqueologia, para perceber o significado profundo desta opção. Por toda essa costa norte peruana, nasceram e pereceram as culturas moche (século II a IX), chimu (X a XV) e lambayeque (X a XIV). Tiveram diferenças entre si, mas foram semelhantes na mesma necessidade de aproveitar os recursos hídricos que as chuvas e os glaciares andinos faziam correr pelo grande deserto onde se desenvolveram. Semelhantes foram também nas manifestações artísticas, onde um traço comum foi a mestria com que gravaram murais de terra, deixando testemunhos gráficos pormenorizados dos seus rituais, dos seus costumes e dos seus mitos.


Lambayeque foi uma cultura que se desenvolveu no litoral norte 
peruano entre os seculos X e XV. Foi uma das que nos 
legou diversos representações gravadas  em paineis  de 
terra (na foto: Túcume)

Uma opção que vem da ancestralidade
A escolha que, hoje, Gerardo Chavez faz da terra como material de base para a sua obra, bebe portanto da ancestralidade em que acabou por encontrar-se consigo mesmo. Foi sempre assim? Não, mas para isso temos de subir quatro pisos, tantos como aqueles que esta exposição ocupa.

Nasce o mistério
Fixemo-nos na primeira obra e no distante que parece estar do grande painel pintado sobre terra que acabamos de ver. Trata-se duma paisagem, quase impressionista, peruana talvez apenas no título: “Los condores, Chaclacayo”. É de 1955 e tinha o artista 17 ou 18 anos. Na legenda, cita-se o próprio mestre: “Todo el mundo empezó a amar esa pintura, que hoy me emociona demasiado, y yo me decía: donde está el misterio?Olhando para a obra, talvez o mistério esteja na relação entre o título e o traço. Los Condores é uma pequena área no distrito de Chaclacayo, na região de Lima.

"Los Condores, Chaclacayo"


E aqui é o momento para dizer que o título aparece sempre como algo a que Chavez recorre para nos ajudar a decifrar as suas obras. Ao contrário de muitos outros artistas, que procuram denominações enigmáticas, Gerardo usa a letra para clarificar o enigma pintado.

Então, talvez o mistério esteja aí mesmo: Uma obra que esbate a realidade, sem um traço que possa dar algum sentido regional à paisagem, mas com um título que a identifica fora de qualquer dúvida: “Los Condores” e, para que seja ainda mais claro, “Chaclacayo”.

Que sentido pode ter este mistério, esta contradição? Encontramo-lo nas obras que aquele rapazinho pintou nos 62 anos que se seguiram. Mas primeiro precisamos de conhecer um pouco o Peru, a sua História e o seu drama. É algo que farei numa breve abordagem, já que esse não é o objetivo deste texto.

Um país diverso em busca de unidades
O Peru é um país de diversidade. Tem uma costa desértica e quente banhada por um Pacífico enfriado pela corrente de Humboldt, uma cordilheira andina que chega aos 6.678 metros de altitude e uma vasta zona de floresta amazónica que ocupa mais de metade do país. Nestes territórios floresceram diversas civilizações e culturas, a primeira das quais, Caral, disputa antiguidade com a mesopotâmia, que a historiografia ainda considera a mais antiga do mundo. Chavin de Huntar, Chancay, Chachapoyas, Lima, Chanca, wari, Tihuanaco... foram inúmeras as civilizações que antecederam o globalmente conhecido império inca, que durou pouco mais de 100 anos até ser abruptamente interrompido pela invasão espanhola de 1532. 

Com esta profusão de histórias e geografias, o primeiro drama de qualquer peruano é responder à pergunta mais simples, “quem somos?” E a dificuldade do país em construir consensos é talvez um fruto desta impossibilidade, um fruto que tem sido colhido, ciclicamente, ora com difíceis tentativas de consensualização nacional, ora com ditaduras e disputas brutais, como aconteceu no seculo XX, primeiro com o sanguinário movimento terrorista Sendero Luminoso, depois com a não menos sanguinária resposta do, ora populista ora ditador, Alberto Fujimori.

Feita uma breve viagem pela conturbada História peruana, voltemos a essa idílica paisagem: “Los Condores, Chaclacayo”. O verde, as árvores, uma profusão que nos baralha entre o impressionismo e o realismo. Tudo o que ali está, poderia estar em milhares de outros lugares em todo o mundo, mas não, o artista vinca pela letra o que não deixou claro pelo pincel: “Los Condores, Chaclacayo”. E temos, aos 17 ou 18 anos, um grito que marcará toda a história duma vida artística. A paisagem indefinida, universal, tão peruana como de outro lado qualquer, ligada ao título que a nacionaliza, que a regionaliza. É como se, sem saber qual o seu lugar no mundo, o adolescente assentasse os pés na terra onde nasceu, e os olhos no mundo. É como se, em busca duma identidade individual, a encontrasse apenas no universal.

Entra o primeiro monstro
E é nesta paisagem que, no meio das árvores, escondido, dissimulado, talvez inconsciente, nos surge aquilo que já então parece ser a figura dum monstro, o primeiro de muitos que veremos daqui em diante, e que Chavez usará como recurso para levantar os pés da matéria-terra e entrar numa viagem mental, cheia de seres imaginários, de faunos, monstros, diabos e diabilhos, que lhe darão as respostas para que mais tarde possa voltar a assentar sobre a terra, literalmente, como veremos.

Em "Los Condores, Chaclacayo" (1955), parece surgir o primeiro dos muitos monstros que povoarão a obra de Gerardo Chavez


O segundo e dissimulado monstro
Natureza morta (1956)
É a partir deste quadro que o “quem sou?”, a mais elementar pergunta, nos surge na cronologia tão bem montada desta exposição. Segue-se uma “Natureza Morta”, de 1956, igual a qualquer outra, sem grande traço identitário, pelo menos para os pouco atentos, porque o monstro, o tal que dentro de poucos anos o lançará numa busca incessante, parece, uma vez mais, ali presente, bem disfarçado, porventura do próprio artista, mas já pronto para se levantar, voar e perguntar: “Quem é que ousou entrar nas minhas cavernas que não desvendo, meus tetos negros do fim do mundo?” (Pessoa, “O Mostrengo”).
Em Natureza morta (1956) parece surgir, disfarçado, o segundo monstro


Do concreto ao imaginário
Em "La vendedora de piña"
 (1959) uma lua azul aparece 
pela primeira vez
Os quadros que se seguem são uma espécie de alegorias realistas, cenas do quotidiano, assumidamente regionais. Uma vez feita a primeira pergunta, o jovem não se aventurou pelo caminho de uma dúvida que talvez ainda não estivesse preparado para suportar. ”La Bohemia” (1959) é uma espécie de monografia nativista, um assentar nas origens reais e concretas, e o mesmo para “Vendedora de piña” (“Vendedora de abacaxis”), do mesmo ano. Esta última tem, contudo, dois pormenores marcantes: Uma lua azul, a primeira de muitas que veremos a partir daqui, esse satélite prateado que foi alvo do culto de grande parte das civilizações que passaram pelo atual Peru. Presente também, pela primeira vez, a roda, aqui no carro da mulher que vende piñas, as mesmas rodas que começarão a multiplicar-se, multiformes, pela maioria das suas obras. A roda, essa que é talvez a perfeita metáfora dum artista que começa na terra, inicia uma viagem artística, navegando de dúvida em dúvida, para finalmente regressar à origem, enriquecido pela caminhada que o tinha afastado, à terra, a pintar sobre terra.

A cabeça do diabo
O corte nesta primeira viagem artística e o início de outra, mais complexa, difícil e puramente mental, parece ser dado numa pintura de 1961 (23-24 anos) cujo título é toda uma antologia: “Cabeza de Diablo”. O que é o diabo se não a incerteza, a negação da ordem? Diabo é Zaratrusta baixando à planície e proclamando que o bem de uns povos é o mal de outros, negando que tudo o que está, seja. Mas não deixa de ser curioso que, neste início de voo, do lado esquerdo da tela, surja aquilo que parece ser uma figura recuperada pelo artista muitos anos depois e que, mais uma vez, no leva à sua origem: um Ekeko, ídolo andino da abundancia, popularmente representado por um homem bonacheirão e carregado de oferendas. É como se, preparado para iniciar jornada rumo à montanha zaratrustiana, Chavez não conseguisse deixar de levar na bagagem um colete salva vidas, que lhe garantisse regresso no caso de não suportar o caminho. Regressará, sim, muito mais tarde, e com respostas.

Cabeza de Diablo” (1961)


Rumo à Europa
Esta obra é também a primeira duma viagem que não é apenas espiritual, mas física. Na sua busca, o jovem Chavez parte para a Europa, em 1960, tinha 23 anos. Parece ter de afastar-se da terra de onde brotou para se livrar da interferência do império dos sentidos, para encontrar respostas na diferença, no caminho que outros caminharam. Vive dois anos em Itália e depois muda-se para Paris, a mesma onde vivia uma das suas influências claras, Picasso, e onde três décadas antes viveu Salvador Dali, outras das fontes de inspiração no período que se segue.

O novo homem
Em 1964 outra obra, mais uma vez com um título transparente: “La Creación del Nuevo Hombre”. Com 27 anos é também ele um homem em busca de ser novo, de encontrar uma identidade própria. Hoje, diz que se sentia bastante bem “en ese mundo medio confuso y enredado que obedecía a su edad y a su lucha por encontrar una creación propia, pese a la influencia de otros artistas”.

La Creación del Nuevo Hombre” (1964)

“Por esse tempo eramos todos revolucionários”
Influenciado pelas correntes de então e também em busca de identidade própria, “Cubasí”, de 1965, é um tríptico onde a marca de Guernica (1937) parece clara. Na sua procura de um novo mundo, Chavez olha com esperança para o movimento revolucionário cubano e pinta uma obra onde o negro e o fantasmagórico é iluminado pelo sol.

Pelos esboços e por fotos sabemos que, em Guernica, estava esboçado que uma figura jazente na base tivesse uma espada na mão esquerda, levantando a direita até ao topo e terminando num punho fechado (o braço no chão segurando um sabre, foi o que restou desta ideia original). Resistindo à tentação ideológica, Picasso optou antes por plasmar uma obra universal, substituindo esse punho pelo sol com uma lâmpada sobreposta, uma duplicidade de fontes de luz com que talvez esteja a dizer que a mudança não pode depender só do devir natural mas precisa da intervenção humana.

"Cubasí" (1965)



O punho fechado que Picasso
 não chegou a deixar em 
Guernica, parece presente em
"Cubasí"

Curiosamente, na parte superior do primeiro painel de “Cubasí”, Chavez deixou uma reminiscência desse punho que Picasso apagou, e não deixou de colocar também um sol, numa obra cuja leitura parece ser da direita para a esquerda, um percurso que é também o da escuridão para a progressiva claridade, o dos monstros para os humanos que lutam. Entre esses monstros, destaque para um que ocupa a parte central do terceiro painel: Numa presença da origem inolvidável, aquela figura lembra as famosas máscaras do diabo, um estilo popular originário de Puno, na serra sul peruana. 
Uma metáfora de máscara de Puno em
"Cubasí"


Por esse tempo, diz Gerardo Chavez numa entrevista à revista “Arte y Artistas” (Abril 2017), todos “éramos revolucionários, y estabamos pendientes del cambio y de la Revolución Cubana”. Longe do Peru, na efervescência revolucionária e parisiense, procura novos porquês, encontrando a integração no seio dos movimentos mundiais de então, mas mantendo sempre um pé no barro original.

Viagem ao interior de si
Em 1966 pinta “Fuegos Fatuos” (28 anos). Já estamos perante uma obra de assumida espiritualidade. Uma vez mais, o título deixa claro o sentido da tinta: esse fogo aparente, um espírito azulado, que se levanta dos pântanos, símbolo da matéria e de morta estabilidade. Nesta obra vislumbra-se claramente esse ser, representação do próprio que o pinta, levantando-se das águas paradas, erguendo-se, metamorfoseando-se em vários, unindo-se num só, quando o voo já se transformou num início sem retorno. Mas este movimento não é uma linha reta, nem sequer uma espiral, antes uma profecia do que estará para vir, é um levantar que forma o início dum círculo, a certeza de que voltará, talvez com novas dúvidas, certamente que também com novas respostas, numa metáfora dessa roda, a mesma que nasceu em “La Vendedora de Piñas” e não mais o largará, ela mesma representação da caminhada do artista.

"Fuegos Fatuos" (1966)


O angustiante ato de solidão
Também de 1966, parece nascer-lhe a consciência de que a procura de identidade é um angustiante ato de solidão. Essa mesma angustia está em “Seres que vivían uno por uno”: O quadro é uma parede, que separa, dum lado o nada, do outro o ser ou seres que vivem vidas separadas. No meio da barreira, uma rompida abertura, algo ou alguém que procura duma saída.

"Seres que viven uno por uno" (1966)


Continuando em 1966, quem é esse “ Un des obliés”? A lua redonda e azul que já estava em “La Vendora de Piñas”?, essa lua que foi adorada por várias culturas da costa e serra peruanas. O ente que voa e poderia ser reminiscência do andino sagrado condor? Naquilo que descobre e naquilo que o viu nascer, parece balancear um pendulo entre a origem e a descoberta. Pode um dos lados estar momentaneamente esquecido, mas se está, é porque é.

"Un des Obliés" (1966)


Momentâneos regressos
O desconhecido gera medo? Claro que sim. “Katia d’La Nuit” (1966), um retrato realista de sua mulher, parece responder a esses terrores, num regresso ao concreto, uma imagem que é de dois afetos, porque Katya esperava então seu filho Ivan. Se este quadro é um pequeno regresso, a consciência de não poder retroceder transforma-se num grito de auto-revolta, numa negação da cobardia. En un momento determinado – diz Chavez na legenda – vi que era muy realista, así que casi lo borré con la mano para darle un gesto de movimiento”. Estamos perante a consciência de quem precisa prosseguir, talvez pacificado por uma nova certeza, a do amor. E a legenda deste retrato dá-nos mais uma pista, Katya já morreu, mas o artista afirma hoje continuar amando-a, porque ”es así, en la ausência, (que) uno ama muchas cosas”. Katya teve então, neste quadro, um papel fortificador, o amor transforma-se no novo salva vidas, dentro dessa mesma mala de viajante mental onde, cinco anos antes, tinha posto um Ekeko ao lada da “Cabeza de Diablo”.

"Katya d'La Nuit" (1966)



Em busca da caverna de Platão
Pode haver saída para os personagens da caverna de Platão? “Ceremonial de la nuit” (1968)  lembra-nos o drama desses homens, amarrados por vida, de costas para a luz, confundindo a sombra com a realidade, a aparência com a mentira. Depois de se banhar nas águas europeias, Chavez parece embrenhado no modelo ocidental: Vivemos nas sombras, mas a verdade existe, noutro mundo, mas existe. Essa mesma crença numa verdade universal e transcendental, que é fonte de fundamentalismos, de intolerâncias, e que explica grande parte da História do Ocidente, desde que Platão o fundou em “Fédon”. Uma crença que não deixa de ser também um absoluto confortável para aqueles que estão em viagem, nessa mesma procura que seria a do artista.

"Ceremonial de la nuit" (1968)

Das ilusões aos cenários
De repente, numa aparente resposta, tudo são apenas cenários. A parede que antes isolava os “Seres que vivían uno por uno”, não são barreiras, mas palcos onde cada um represente de acordo ao cenário que se lhe apresenta. De igual maneira, a verdade paltónica pode talvez ser substituída por um relativismo. Nesse mesmo ano de 1968, Chavez pintou duas obras que parecem dar esta resposta provisória: “El primer acto” e “El segundo acto”.

"El primer acto" (1968)


Ecran d’espoir” (1969)

Uma mental organização do real
Ecran d’espoir” (1969) é uma obra marcante nesta nova via alternativa. Se tudo são cenários, podemos catalogá-los, organizá-los, dividi-los por mundos e representação. Depois duma viagem à mente, esta começa a poder fundir-se com os sentidos. “Ecran d’espoir” parece uma obra de sistematização, tudo catalogado ecrã por ecrã, sucedâneos dos anteriores cenários teatrais, tudo metido dentro das suas caixas e devidamente catalogado. O artista parece encontrar alguma paz, numa ponte que o une enquanto ser mental ao ser material. Continuam a ser à parte, sem fusão, mas cada um é e tem o seu lugar. Estes mesmos dois mundos, o material encaixado por catálogos, e o mental que se liberta, aparecem em “Romeo y Julieta” (1970) e no “Pájaro rebelde” (1970), rebelde porque voa, saindo duma catalogação que, apesar de tudo, existe no mundo que observa de alto.



Romeo y Julieta” (1970)



"Pajaro rebelde" (1970)


No princípio era água
E para refazer essa fusão, veio a água, a origem da vida. Foi na água que Gerardo terá lançando uma âncora para, imergido que estava, submergir na luz, na resposta, na identidade. A água é o mote de toda uma série que começa em 1973, com “Zeus”, uma relação direta e ocidentalizada ao pai dos deuses, à fonte das fontes. Foi na água que, “entre larvas, gusanos, moscas, hasta sapos y ranas, rebusque esa forma forma com la que soñaba y que ni yo mismo sabía que buscaba”, diz na legenda do quadro.

"Zeus" (1973)

"Metamorfosis del agua" (1973)
Deste ciclo podemos ver mais duas obras, ambas também de 1973: “Metamorfosis del agua” e “Ils montent desde l’eau pour prélever le tribu”. Este é também um ciclo de marcada influência daliniana: O surrealismo, o mundo onírico, transforma-se numa ponte entre o real e o imaginário, sem que nunca fique claro qual é um e qual é o outro. Mas o mote já tinha sido dado em 1970, numa outra obra, fora deste ciclo: “Les proies de l’eau”, mas aqui, ainda, com o mundo aquático como algo obscuro, misterioso, difícil de transpor.

Regresso à infância
Temos até agora um percurso que começa em 1955, uma busca de identidade que passa por uma profunda introspeção, aqui e ali vinda à superfície, pela constatação de que talvez o mundo seja compreensível, ainda que sem conseguir ainda separar a coisa pensada da coisa vista. Tudo se funde na água, espécie de útero universal que anuncia o nascimento de algo novo. E esse algo nasce na década de 80, plasmado numa recordação de infância, “Animal de medianoche” (1981), a evocação de quando, em criança, foi mordido por um cão: “Con los tonos oscuros que envolven este cuadro quise expressar esse mágico mistério al que recurren los niños para contarse historias”.

Animal de medianoche” (1981)


Tal como em 1964, no inicio da caminhada, pintou “La creación del nuevo hombre”, que ilustra a dor de parto dessa nova vida, agora começa um novo momento, regressando à infância e fazendo-se de novo criança para, agregando tudo o mais à experiência original, finalmente, construir a sua síntese.

Depois veio a união
El último ídolo” (1980) é talvez o quadro que melhor ilustra este homem que regressa à origem, renovado e para renovar. No centro, em grande escala, um cuchimilco, ídolo da cultura chancay, que floresceu na costa central do atual Peru entre os seculos XIII e XV. A partir desta obra assistimos a uma progressiva fusão de propostas, com os modelos, os temas e os estilos bebidos na Europa combinando-se com outros profundamente peruanos. A propósito deste quadro, é o próprio artista quem diz que “es un homenaje a una cultura (a Chancay) que adoro y que me acerca a mis ancestros”. Mas a fusão ainda não é completa, o preto e branco que marca as suas construções a partir daqui, parece indicar que são dois mundos que ainda estão separados, que ainda não se uniram.

El último ídolo” (1980)


Do mesmo ano e com a mesma característica cromática e simbólica, em “Mama” o cuchimilco é uma fonte de úberes que alimentam vários seres, invocando essa infância a que Gerardo regressou; uma clara alusão a que, alimentado que foi por outras fontes, vai agora regressar e inspirar-se na teta original.

Mama” (1980)


Chegado a de onde veio
Estamos no início de uma nova viagem. O artista regressa a 1955, mas agora vem com a bagagem cheia de experiências e de mundos. Terá talvez encontrado a sua identidade universal e está agora à procura do particular, esse que não parecia capaz de gerir quando, 25 anos antes, pintou “Los Condores, Chaclacayo”.

O diabo nos separa, o diabo nos une
Que se trata duma nova busca, ele mesmo se encarregou de nos dizer pictograficamente em “Les chercheurs de la lune” (1982): O mesmo preto no branco, e a mesma lua que nunca mais o abandona desde que na “Vendedora de piña” a representou em 1959. Essa lua que foi objeto de culto para muitas das culturas que surgiram na História peruana, incluindo os Incas, que a adoravam como esposa do sol, a maior de entre as divindades com expressão física. E na base do quadro, pintado com rostro azul, lá está ele, o diabo, lembrando as máscaras de Puno e talvez uma constatação: Aquilo que mais parecidas torna as civilizações, não é Deus mas o seu contrário.

Les chercheurs de la lune” (1982)
Essa fusão parece estar já bastante avançada em 1990, em “El guerreiro”, onde podemos ver, sobrepostos, dois guerreiros, um ocidental, de armadura, outro da cultura moche ou mochica, da qual já falamos. A cor, que ainda não tem harmonia com o todo, dá entrada no vermelho vivo da máscara de diabo que sustenta o primeiro guerreiro, como que a dizer que entre um e o outro, é esse diabo o que os une. Antes, em 1983, já pintara outro, mas esse era apenas “El guerreiro mochica”, montado sobre rodas, essa roda sempre presente e que é, em si mesma, um símbolo da permanente mudança e do permanente retorno.

El guerreiro mochica” (1983)



El guerreiro” (1990)


O pássaro de dois bicos
Entramos em 1991, e é neste ano que a síntese parece definitivamente composta. “El pajaro de dos bicos” é profundamente, escandalosamente, cromado. Prenhe de símbolos múltiplos, andinos e ocidentais: As luas, os sóis, os condores, o requinte europeu. Tudo para dar prazer, alegria e descendência a esse pássaro que, qual Janus, é dotado de dois rostos: com um, vê de perto a mulher com que se funde, com o outro, o céu, o horizonte.

El pajaro de dos bicos” (1991)


Um literal regresso à terra
Mas o melhor estava para vir, o novo homem estava realmente para nascer. Fecundado de mundo, ajusta o microscópio, chega-se cada vez mais à origem das suas origens, ele que nasceu em Trujillo, no norte do Peru: Os moches,  os chimus, os lambayeque, todas as antigas culturas dessa mesma costa norte peruana. Chavez começa a usar os próprios materiais como parte da arte, cria uma nova técnica e pinta sobre terra, a mesma na que os seus ancestrais gravaram e gravaram e gravaram, deixando-nos múltiplos testemunhos. Consegue-o, estendendo panos de juta e cobrindo-os com lama. Depois de seca é nesta base que agora pinta.

E se estas culturas usaram expressões artísticas repetitivas, Gerardo assume-lhes a herança, mas também a de todos os mundos por onde passou. Não usa a arte para fundir o todo numa expressão que se multiplique até à exaustão, mas para dar voz à subjetividade, porque só quem já conheceu o todo, é capaz de se assumir como parte e, até aqui, já tinham passado três décadas na sua intensa busca universal.

A procissão da batata
A mais espetacular e significativa desta nova arte é, talvez, “La procesion de la papa” (“A procissão da batata”) de 1995. Foi a batata que mudou o mundo, que permitiu a expansão demográfica mundial, que alimentou e alimenta milhões todos os dias, que permitiu algumas das maiores mudanças da História. E foi ali, nos Andes onde hoje é Peru, que gerações e gerações de agricultores a desenvolveram e plantaram, conseguindo criar uma espécie para cada patamar climático, para cada nicho ecológico, para cada necessidade: são mais de 5,000, os tipos de batata com que estas culturas andinas continuam hoje a alimentar o mundo. Y por qué no una procesion de la papa si es el milagro del mundo!” responde Chavez quando lhe perguntam “porquê?”. E o material? Essa mesma terra que gravaram os seus antepassados, essa mesma que cultivaram e onde essa batata, objeto de culto, se planta e cresce.

La procesion de la papa” (“A procissão da batata”) (1995)


O ícone protetor
Mas foi em 1991 que esta técnica nasceu, e uma vez mais com um símbolo andino, já antes representado, o Ekeko. E não deixa de ser curioso que foi colocando uma alegoria de Ekeko junto à sua “Cabeza del Diablo”, que em 1961, com 24 anos, cortou amarras da origem e partiu em busca de universos. E é também com um Ekeko que, 30 anos mais tarde, regressa a essas mesmas origens, tonificado por experiencias exteriores e, sobretudo, interiores. É como se este ídolo ancestral da boa fortuna, fosse um ícone protetor a que recorre antes de iniciar cada viagem, e agora está para iniciar outra.

"El otro Ekeko" (1991)


Confrontando Platão
O grande painel “La justicia en su laberinto”, de 2009, parece o início da maturidade desta nova fase e é também ele pintado sobre terra. Aqui parece já capaz de confrontar a tradição ocidental por onde bebeu. O que é a justiça se não uma vã tentativa de encontrar a verdade?, essa verdade que não existe sem transcendência. E quem a criou, se não o pai do mundo das ideias e, consequentemente, do ocidente?

Este quadro é uma versão antagónica da caverna de Platão. Em 1968, já vimos, pintou “Cerimonial de la nuit”, que parece uma alegoria de Alegoria e, com ela, a convicção de que vivemos nas sombras, mas a verdade existe, num mundo que nos supera, mas existe. Fortalecido pela descoberta de si, Gerardo Chavez está agora capaz de enfrentar Platão e tudo o que ele representa: Em “a justiça no seu labirinto”, não há um mundo de luz que se projete através de sombras, mas apenas elas mesmas, as sombras. É um território de subjetividades, de multiplas visões de "crime e castigo", com base em algumas das quais essa veneranda senhora, cega como Édipo, decide “verdades”, punindo com o sabre que tem na mão direita. Um sabre que só tem legitimidade enquanto se mantiver a crença na transcendência. É esse o labirinto que se nos apresenta nesta grande tela e, com ele, o da pós-modernidade: A constatação de que a verdade morreu e a convicção de que mais não é do que a mentira muitas vezes proferida. E este não é um abalo pequeno, corrói as bases dum edifício com 25 séculos... Sessenta e dois anos depois da sua primeira tela, Gerardo Chavez continua a ser um autor do seu tempo e um anunciador de porvires.


La justicia en su laberinto” (2009)

Motivo suficiente para vir a Lima
Pelo seu percurso, pelas dúvidas e pelas respostas que foi encontrando. Pelos inúmeros portos onde chegou e de onde voltou a partir, Gerardo Chavez é uma referência histórica e oferece-nos testemunhos artísticos de angústias e constatações que nascem depois do choque da primeira guerra, se agitam com segunda e chegam perdidas à contemporaneidade. Vale a pena vir a Lima até novembro, só para ver esta exposição.


Onde: Lima, Museo de la Nación
Quando: De 1 de setembro a 18 de novembro, segunda a domingo das 10:00 às 20:00
Entrada: Gratuita
Website da exposição

Luís Novais