quarta-feira, 29 de junho de 2016

DEMOCRACIA EM REGRESSÃO?


Por ser universal e implicar um processo decisório de temas concretos, não há, numa democracia de massas, mecanismo mais democrático do que o referendo para traduzir a vontade dum povo.

Na segunda conferência que publicou em “A Teoria do Todo”, Stephen Hawking conta que foi preciso esperar até 1922 para que o físico russo Alexander Friedman enunciasse pela primeira vez a possibilidade do universo estar em expansão. Trata-se duma ideia que sete anos depois viria a ser confirmada pelas observações de Hubble e que até Einstein torneou em 1915, quando enunciou a teoria da relatividade.

Partindo desta constatação, hoje em dia dada como certa, Hawking questiona se haverá um limite à expansão, se o movimento não chegará a um ponto zero, a partir do qual começará a inverter-se numa atração mútua resultante da força gravitacional.

Esta possibilidade de a uma expansão se seguir uma regressão, é um modelo interessante e conduz-nos a uma dialética que pode ser aplicada em vários sentidos. Lembrei-me disto a propósito da evolução que teve a ideia de democracia, desde que começou a ser teorizada na modernidade e se foi universalizando ao longo da contemporaneidade.

A partir do século XVIII, as ideias iluministas foram levando a que, pelo menos em teoria, na Europa se começasse a abandonar o absolutismo puro e a governar “pelo povo mas sem o povo”. Este movimento político ficou conhecido como “despotismo iluminado” e em Portugal teve o seu expoente no Marquês de Pombal. É a partir desta ideia que começa uma lenta caminhada, com avanços e retrocessos, tendente a colocar a soberania nas mãos do cidadão.  

Quando participamos dum processo eleitoral, esquecemos muitas vezes de que para aqui chegar foram precisas algumas revoluções e que o direito ao voto se libertou gradualmente de diversas restrições: Nível de riqueza, instrução, género e até raça. Foi preciso esperar até 1906 para que a Finlândia (na altura um grã-ducado) fosse o primeiro país a instituir o voto universal e o direito das mulheres a serem eleitas.

O movimento pela universalização do sufrágio expandiu-se durante o século XX. Nos Estados Unidos, só depois de 1966 acaba plenamente a restrição racial e, hoje em dia, alguns grupos sociais ainda sofrem limitações. Duma maneira geral, já ninguém se atreve a considerar que um país sem voto universal seja uma democracia.

 Ao mesmo tempo, foi crescendo o direito de participação, através de mecanismos que servem de contraponto às limitações que o sistema representativo impõe ao pleno exercício da cidadania. No âmbito dessas restrições, por exemplo em Portugal, fiz algumas contas (ver: “Não foi eleito coisíssima nenhuma”) e concluí que os deputados do arco governativo são escolhidos por apenas 14.000 pessoas (o alargamento atual deste arco alterou o número, ainda que não significativamente).

Alguns dos contrapontos a esta limitação são elitistas: Conselhos de concertação social, audição de associações corporativas, de sindicatos etc. Outras são populares e, entre estas, o referendo é talvez o único instrumento efetivo. Por ser universal e implicar um processo decisório de temas concretos, não há, numa democracia de massas, mecanismo mais democrático do que o referendo para traduzir a vontade dum povo.

Isto leva-me de volta a Stephen Hawking e ao início deste artigo. Recentemente tivemos um referendo no Reino Unido de onde resultou a decisão de saída da União Europeia. Este resultado contrariou a visão e o interesse duma elite alargada que teme abalos potencialmente conducentes a um vazio que, para uns poucos, lhes ameaça a hegemonia política e social e, para a maioria, apenas o equilíbrio precário em que já se encontram. Depois disso, levantaram-se inúmeras vozes contra a real representatividade do voto expresso, sobraram as citações duma frase contra a democracia atribuída a Churchill e, na imprensa considerada séria e de regime, abundam artigos sobre como dar a volta a este resultado (ver por exemplo How to Stop Brexit no The Guardian), ao mesmo tempo que saem caricaturas sobre uma putativa ignorância e mudança de opinião dos eleitores.

Vendo estas reações, pergunto-me se, no percurso de expansão que vem do século XVIII, a Democracia não terá atingido o seu ponto máximo e se não estaremos a entrar num mecanismo de regressão. Se bem me lembro, o despotismo iluminado era, por definição, a ideia de que uma elite ilustrada saberia interpretar melhor do que o povo aquilo que ao povo convinha.

E no que respeita às conferências de Hawking, fico-me por esta. A seguinte é sobre buracos negros: Aqueles que têm uma atração tão grande que destroem tudo aquilo que se lhes aproxima.



Luís Novais


Foto: Geralt

sexta-feira, 24 de junho de 2016

BREXIT, PORTUGAL E EUROPA EM OITO MITOS


No que me toca, como português que sou, espero que o meu país encontre o seu rumo e o seu espaço. Longe das imposições, longe dos medos, longe daqueles que querem que tudo se mantenha porque estão no grupo dos que ganham com isso.

O resultado do referendo no reino Unido criou uma onda de choque e pavor que é natural. Somos humanos, temos medo do desconhecido e, segundo algumas correntes da psicanálise que subscrevo filosoficamente, temos até medo da responsabilidade inerente à liberdade. Por muito que critiquemos a imposição, no momento crucial em que nos poderíamos libertar, convertemo-nos em defensores da imposição, por medo da necessidade de optar, por horror à alternativa de diluvianos vazios que nos são transmitidos por campanhas de comunicação bem orquestradas.

Desde há anos que tenho uma posição crítica da União Europeia e da nossa permanência, o primeiro artigo que sobre isso escrevi data de 2009. Não vai ser agora, que os pilares foram abalados, que vou mudar uma posição que é filosófica, antropológica e económica.

Aqueles que se horrorizaram com o Brexit usam vários argumentos, que tenho procurado elencar. Este texto é o meu contributo para sossegar os mais agitados e para responder a esses considerandos. Faço-o abordando oito mitos: três sobre a situação do Reino Unido, quatro sobre Portugal e um sobre a institucionalidade da UE

Primeiro mito: “Foram extremistas de ultradireita que votaram pela saída”
Este argumento é bem típico da postura sobranceira que as cabeças da UE têm adotado. Equivale àqueles fantasmas de que os comunistas comem criancinhas ao pequeno-almoço, ou que os apoiantes dos partidos da direita democrática são um bando de fascistas. Trata-se de rótulos fáceis de propagar, mas que não resistem a uma análise minimamente séria.

Foram 52% os britânicos que decidiram que é melhor estarem fora da UE. Pode ter havido uma convergência com bolsas de radicalismo, mas não posso aceitar que um número tão elevado da população britânica seja radical de ultra-direita. Ainda assim, mesmo que fosse, paciência, é a Democracia.

Segundo mito: Os ingleses estão convencidos de que ainda são um império
É curioso que os mesmos que tal afirmam, acham que o povo não tem o direito de decidir e pretenderiam, talvez, impor-lhe uma permanência que ele mesmo não quer. Atitude mais imperialista e colonial não poderia haver.

Terceiro mito: O Reino Unido vai desintegrar-se
Para começar, tenho dúvidas de que isso suceda. Quando passe a paixão inicial, escoceses e irlandeses irão pensar duas vezes antes de se meterem numa União que é cada vez mais frágil. De qualquer forma, se assim decidirem, será a decisão soberana dum povo. Mais uma vez, é a Democracia. Não percebo por que motivo há em Portugal tanta gente preocupada com a coesão do reino de Sua Majestade. Não há que sofrer dores de parto alheias, para dores bastam as nossas.

Entrando agora nos mitos que se referem a Portugal, também há várias posições, que tenho vindo a colecionar e que em seguida tratarei de comentar.

Quarto mito: Se não estivéssemos na UE seriamos um país atrasado.
Este argumento é um valor quase seguro para quem o apresenta: como essa foi a via, não podemos comparar com o contrário. De qualquer forma não acredito que assim seja. Primeiro porque estamos na UE e longe de ser um país sustentável. O mundo está cheio de exemplos de pequenas nações, sem recursos naturais e que são casos de sucesso económico. Para não falar do estafado exemplo da Suiça, temos a Islândia, a Suécia, a Dinamarca, Áustria, Mónaco,  Finlandia, Nova Zelândia, Irlanda…

Portugal é um país com potencialidades culturais, económicas e geográficas que estão por explorar. Fizemo-nos atlânticos e das três vezes que a nossa soberania esteve em causa, foi porque nos voltamos para o continente e não para o mar. Teremos que esquecer a muleta europeia, que tem um custo elevadíssimo, e avançar num caminho, que pode ser duro, mas é nosso.

Quinto mito: É graças à Europa que temos infraestruturas.
Este argumento tem a mesma falácia do anterior: é difícil comparar uma via que se seguiu, com outra que é hipotética. Primeiro, as infraestruturas são resultado do desenvolvimento económico, e isso conduz-nos ao ponto anterior. Segundo, estamos hoje muito infraestruturados, eu diria que excessivamente infraestruturados, e para quê? O excesso de recursos é inimigo da sua boa aplicação e isso foi o que nos aconteceu. E é bom lembrar que grande parte da excessiva dívida pública se deve à necessidade de colocar uma contrapartida nacional em todos os projetos financiados. Sabemos bem quem se beneficiou realmente com isso.

Sabemos também da corrupção que andou em torno de todo este dinheiro. Sabemos casos de empresas que receberam apoios que foram aparentemente para um fim, mas que na realidade foram parar a outros bolsos. Sabemos de equipamentos que, da indústria à agricultura, foram adquiridos sem que fossem realmente necessário. Quem anda pelos campos, conhece dezenas de histórias de tratores comprados com projetos feitos pelos próprios vendedores e que nunca tiveram sequer 10% de utilização.

E toda esta parafernália de máquinas foi comprado onde? Elace… procure-se o rastro ao dinheiro e descobre-se facilmente que ele é como o bom filho: à casa retornou.

Sexto mito: Graças à Europa temos o euro e uma economia desenvolvida
Esta é outra mentira, primeiro porque a nossa economia não está desenvolvida, segundo porque aquilo que conseguimos avançar não foi graças à Europa, mas apesar da Europa. A Europa antes tratou de destruir o nosso setor produtivo para vender tecnologia à China.

O acesso ao mercado Europeu estaria garantido de qualquer forma e sem as consequências nefastas das imposições feitas sobre uma economia que não estava preparada para um embate tão brusco. Hoje em dia qualquer país em vias de desenvolvimento tem um tratado comercial com a União Europeia que lhe garante um acesso praticamente livre a este mercado. Por maioria de razão, há muito tempo que nós estaríamos nesta situação, com a vantagem de que poderíamos ter uma evolução gradual, em vez da terapia de choque que destruiu empresas, criou desemprego e obrigou a um endividamento tão grande que se tornou insustentável.

No setor privado, a necessidade de competir subitamente num mercado que estava mais adiantado, implicou um esforço de endividamento brutal num setor empresarial que tinha pouca capitalização. Numa edição de 2014 The Economist denunciou isto mesmo: “Em Portugal um quatro das empresas cotadas tem dívidas superiores a cinco vezes os seus resultados antes de juros, impostos, amortizações e depreciações (EBITDA)” (ver artigo). Esta situação está bem documentada nos dados referentes a Abril recentemente divulgados pelo Banco de Portugal: O endividamento do setor não financeiro (Estado, famílias e empresas não financeiras) é de 709 mil milhões de euros, ou seja, quase quatro vezes o PIB. Se calcularmos uma taxa de juro média de 5%, isso significa que a nossa economia tem de pagar por este financiamento 35.5 mil milhões de euros, ou seja, 20% do PIB só para juros! Há economia capaz de acrescentar esse valor? A nossa de certeza que não.

Quem beneficiou com tudo isto? Vale a pena ler um artigo de Pedro Tadeus no Diário de Notícias de 14 de Junho: Entre 2008 e 2010 a banca nacional acumulava imparidades de 30 a 40 mil milhões de euros, ao mesmo tempo que distribuiu 2 mi milhões de dividendos aos acionistas… e assim se encontra o rasto aos 70.000 milhões que saíram do país diretamente para paraísos fiscais (ver artigo).

Foi a este endividamento que a terapia de choque da União Europeia, primeiro, e o euro, depois, nos conduziram: fomos obrigados a competir mais e mais rapidamente do que a nossa capacidade.

Se hoje estamos nesta situação, à União Europeia o devemos. Euro, tu és euro e sobre ti destruiremos a tua economia, mais bem deveria ter dito António Guterres naquele Conselho da Europa de 1995.

Sétimo mito: Não poderemos emigrar
Mais do que podemos, a situação a que nos trouxeram obrigou-nos. É absolutamente falso que, estando fora da União Europeia, os portugueses fossem impedidos de emigrar para países comunitários. Primeiro porque sempre o fizeram, mesmo quando o Estado português combatia esse fenómeno com todos os aparelhos repressivos que possuía. Depois, porque a emigração não é uma dádiva mas uma necessidade de quem recebe. Seja pela via política, seja pela incapacidade do mercado de trabalho, nenhum país aceita emigrantes se não lhe fazem falta,.

Por último, há argumentos que tratam de defender a própria União Europeia, respondendo às críticas que são feitas ao modelo institucional europeu. Isso leva-no ao último mito.

Oitavo mito: A União Europeia é democrática
Os que assim o dizem, refugiam-se no argumento da democracia indireta: nós elegemos parlamentos, que elegem governos, que elegem ou constituem os órgãos comunitários. No meio disto tudo, temos um Parlamento Europeu, esse sim diretamente eleito e com legitimidade democrática, mas que pouco mais é do que uma figura de retórica sem poder real.

Pelo caminho estes órgãos, distantes do soberano, definem diretivas que têm mais força do que as leis nacionais. Ou seja: o menos (ou nada) democrático obriga ao mais democrático.

Para cúmulo, as verdadeiras decisões não são tomadas nos órgãos institucionais, mas em organizações informais que não têm cabimento nos tratados. Todos estamos lembrados das recentes declarações de Junkers, que afirmou ser o Eurogrupo um órgão informal e que pode incluir e excluir quem entenda. Apenas para dar um exemplo, este é o mesmo Junkers que em Setembro de 2012 afirmava que “O Eurogrupo imporá exigências realmente duras a Espanha em matéria de ajustes orçamentais e reformas” (ver aqui). Conclusão: É num organismo que nem existe que se tomam decisões de primeira importância e se pretende impor medidas aos povos da Europa.

E temos, assim, oito mitos com que nos pretendem convencer a aceitar o status quo burocratico-europeu. São argumentos frágeis e nada honestos. No que me toca, como português que sou, espero que o meu país encontre o seu rumo e o seu espaço. Longe das imposições, longe dos medos, longe daqueles que querem que tudo se mantenha porque estão no grupo dos que ganham com isso. Portugal tem quase 900 anos de história e esse é o nosso principal ativo. Há anos que defendo um país Atlântico, integrado num espaço linguístico, que possa ser ponte entre essa zona e a Europa continental. Nada me move contra uma União Europeia que seja democrática e que respeite os povos. O que não posso aceitar é um modelo imposto e que tem uma agenda ultra-liberal que não é sufragada e que se rege por interesses nacionais distintos dos nossos. Uma União Europeia livre até nos convém e é um fator de estabilização da câmara de horrores que foi a história da Europa central. Defendo que Portugal deveria estar fora dela, mas com ela estabelecendo pontes.


Luís Novais

Foto: Moritz320



BREXIT: UM ABALO NA OLIGARQUIA EUROPEIA


O que está em causa é a Democracia e, por falar em Democracia, espero que os portugueses não sejam menos do que os britânicos. Fico à espera dum referendo onde possa ter o direito de também dizer Não.

Hoje, um povo livre votou sem medo pela saída duma organização que não é democrática. Esta vitória da Democracia sobre a oligarquia que tem nas mãos uma equipa de burocratas seria, por si, motivo suficiente para festejarmos.

Um dos exemplos que os britânicos acabam de dar, foi o de que se pode votar em liberdade e que o medo é o principal inimigo da Democracia. Durante esta campanha foi usada toda a força de falsos argumentos destinados a amedrontar os eleitores: Que seria o descalabro económico, que haveria desemprego, que as empresas teriam de sair do país… houve até multinacionais que publicaram anúncios nos jornais apelando ao remain. A tudo isto, o povo respondeu claramente e sem se deixar condicionar. Trata-se da Democracia em vigor mais antiga do mundo, e hoje ficou bem demonstrado porquê.

As razões deste resultado podem ser vistas por duas vias: Institucional, uma, social, a outra.

Institucionalmente, os britânicos disseram claramente que não mais permitirão que a sua soberania seja transferida para as mãos de burocratas não eleitos que impõe medidas subtraídas ao sufrágio popular. Façam-se as campanhas que se façam, a União Europeia tal qual está é um entrave à democracia na Europa. A inevitabilidade de passarmos para a legislação nacional as diretivas comunitárias é um dos argumentos mais usados para nos condicionar a opções que não votamos.

Socialmente, não há como não considerar que a globalização ultra-liberal levou à maior concentração de riqueza da contemporaneidade, destruiu a viabilidade da pequena e média iniciativa e está a aniquilar duzentos anos de conquistas sociais que transformaram os proletários da Revolução Industrial na classe média com formação, direitos e garantias que ainda vamos tendo.

Por falta de democraticidade a União Europeia foi presa fácil dessa visão económica e social que quer impor ao mundo uma globalização desregulada e sem direitos sociais. Hoje, 40% das vendas mundiais são controladas por apenas 147 oligopólios (Pode ler: “Setor Público e Oligopólio na Economia Global”). Em 2015 o 1% de mais ricos do mundo tinha tanto como os restantes 99% e, até entre estes, assistimos a uma concentração crescente: Um reduzido número de 65 pessoas tem tanto como a metade mais pobre do mundo; em 2010 eram 388 (mais informação aqui).

Acredito que a votação britânica foi também uma resposta desta classe média em erosão contra uma organização superestrutural que tem imposto uma série de medidas que vão ao encontro desta visão financista e desregulada da economia, a mesma que levou a tamanha concentração de recursos e que nos conduziu à crise mundial que já  vivemos e levará à que se avizinha.

Em Portugal temos um bom exemplo de como o desaparecimento da classe média e o empobrecimento generalizado da população arrasta consigo a agonia dum país e, num prazo que já foi maior, pode levar ao seu desaparecimento efetivo.

Por motivos que se prendem com as raízes de Portugal e que já aqui expliquei, não defendo a nossa permanência. Contudo, no caso da Europa central, parece-me que a União Europeia, uma verdadeira União, é útil e pode resolver uma série de problemas que a História conhece. Independentemente de continuar a defender a saída de Portugal, espero que a decisão corajosa que tomaram os eleitores do Reino Unido ensine aos burocratas que têm de ceder o poder ao povo.

O que está em causa é a Democracia e, por falar em Democracia, espero que os portugueses não sejam menos do que os britânicos. Fico à espera dum referendo onde possa ter o direito de também dizer Não.


Luís Novais


Foto: Moritz320

sexta-feira, 17 de junho de 2016

SOBRE O “O MEL E AS VESPAS” DE FERNANDO ÉVORA

Este livro é um retrato sem dó nem piedade daquilo que nos tornamos, do como e porquê de aqui termos chegado.

Depois de nos brindar com “No País da Porcas Saras” e “Amor e Liberdade de Germana Pata Roxa”, em “O Mel e as Vespas” Fernando Évora oferece-nos a obra-prima que os outros dois livros anunciavam.

Trata-se aparentemente da história de duas famílias, os Valente e os Caça Lobos, mas o que está em confronto no desfilar de gerações é muito mais do que uma série de narrativas; é, mesmo, muito mais do que as aventuras e desventuras de Portugal desde o século XIX até aos nossos dias. Nestas páginas não é Portugal, mas todo um ocidente que se confronta: uma cultura de gradual perda de identidade, de descaraterização, de coisificação da pessoa.

Cheios de defeitos, capazes de matar, amantes e violentos. Padres que fazem filhos em mulheres casadas e homens que disparam quando se descobrem enganados. Arraiais de porrada e bebedeiras de meia-noite. Estes personagens vivem intensamente, são pessoas capazes de obras aparentemente inúteis, obras que constroem apenas porque sim, apenas porque são importantes para que o construtor seja. É o caso dessa aparentemente escusada torre de Cancino, contruída em tempos do Remexido por um Ovídio, o mesmo que “gastou neste projeto grande parte das suas poupanças”. E porquê? Ilusoriamente para avisar os habitantes da aldeia sempre que uma ameaça se aproximasse, mas onde se testemunha, isso sim, uma participação do indivíduo na comunidade, uma torre que, sendo materialmente inservível, perpetua o construtor como tendo sido naquele espaço e naquele tempo. E eis que, numa metáfora aparentemente tão simples, temos toda a carga conceptual do ser sobre o ter.

Nos nossos dias, Ovídio teria sido um louco, um esbanjador da acumulação familiar. Mas desde Ovídio até hoje há todo um devir de que os personagens desta obra são testemunhas e atores. Aliás, o próprio nome do “louco” construtor apela a um tempo remoto, mais remoto do que o século XIX em que terá vivido. O seu pai chamou-se Rómulo, tal como o fundador de Roma, e os seus filhos foram “Pompeu, nome do general que desafiou o poder de Júlio César", e Lucrécia a filha, "bela dama romana que pôs fim ao domínio etrusco na cidade do Tibre”. É como se Ovídio já nem do século XIX em que viveu desse fé, um século já marcado por um capitalismo sem regra e descaracterizador. Não será por acaso que os habitantes da aldeia olhavam a sua família “de soslaio, considerada gente meia louca, pelo menos desde a obra falhada” (a tal torre).

Todos estes Ovídios, Pompeus e seus descendentes, vão acompanhando a marcha do tempo. O primeiro a descrer do passado e a capitular foi seu neto Augusto, também ele de nome imperial, filho de Pompeu. Augusto deixa o ofício tradicional de dar caça aos lobos e compra umas terras sobre as quais “corriam lendas, afiançavam-se estranhas aparições e teimavam-se velhas superstições”. Mas este Augusto “era homem moderno”, “conhecedor de ciência”, “não estava para dar ouvidos a crendices”. Desafiando mentalidades e tradições decidiu dedicar-se à monocultura de papoilas opiáceas que pretendia exportar para Inglaterra.

O negócio não funcionou e nesta atitude de desafio mercantilista ao passado há uma espécie de “pecado original”, uma culpa que desencadeia todas as tragédias seguintes.

Quando leio este Mel e estas Vespas, lembro-me das palavras que Erich Fromm escreveu em 1968, em “A Revolução da Esperança”, o mesmo livro que tem um sugestivo subtítulo: “Rumo a uma tecnologia humanizada”. “A nova norma ética”, dizia Fromm, “é o progresso, entendido basicamente como progresso económico, aumento da produção, criação dum sistema de produção cada vez mais eficiente”. E adiante conclui: “O homem moderno tem tudo (…) mas nada é”.

Fromm escreveu estas palavras nos anos sessenta, tentando fazer uma prospetiva do rumo a que o capitalismo desenfreado já levava e mais levaria o Ocidente. Não se enganou, como já sabemos. Este mesmo rumo, desde comunidades que eram e agora aparentemente têm, consegue-se encontrar em “O Mel e as Vespas”. O enredo vai desfilando até que Fernando Évora chega ao nosso tempo e, neste tempo que é nosso, encontra o homem-nada, sem empatia, um ser transformado em coisa que já não consegue dialogar, sem identidade, sem força sequer para estabelecer relações. Mas há esperança, uma esperança que surge do encontro de si que o personagem narrador descobre na memória do que foi.

Esta é uma obra de cronologia variável. Começa num hoje inconsciente, viaja ao tempo do mel e regressa ao triunfo das vespas, outra vez hoje, mas com consciência. Ao escrevê-la, Fernando Évora afirma-se como um escritor que entende o drama da contemporaneidade, um escritor capaz de nos pôr o dedo na ferida, escarafunchá-la, fazer-nos sofrer pelo que temos e pelo que não somos. Este livro é um retrato sem dó nem piedade daquilo que nos tornamos, do como e porquê de aqui termos chegado.

A consciência sentida é talvez o único caminho para a reforma positiva. Ler “O Mel e as Vespas” é sentir e consciencializar. Por isso, esta obra é transformação e, sendo-o, é literatura em estado puro.


Luís Novais

segunda-feira, 13 de junho de 2016

APROPÓSITO DO CRIME DE ORLANDO. Combate à violência e regresso à comunidade


As forças centrípetas da globalização estarão, talvez, a intensificar a quebra de laços sociais que já conhecíamos das grandes metrópoles. Os primeiros de entre esses laços destruídos terão sido os mais indefesos: Aqueles que têm origem em comunidades de sentimentos positivos.

O crime de Orlando foi trágico, macabro e teve causas que chocam com as mais profundas convicções daqueles que defendemos uma sociedade aberta e tolerante. Não é isolado e não acontece por acaso.

O Gun Violence Archive é uma ONG criada em 2013 e dedica-se a construir uma base de dados pública sobre a violência com armas de fogo nos Estados Unidos. De acordo com os dados recolhidos, só no que vai deste ano, o país já somou 23.317 incidentes, 5.967 mortos, 12.252 feridos. Entre mortos e feridos, 257 das vítimas foram crianças com menos de 11 anos e 1.276 adolescentes até aos 17. Os assassínios em série foram 136, com um total de 72 mortos e 140 feridos, incluindo os 51 e 49 de Orlando, respetivamente.

Entretanto, em Paris decorre o campeonato europeu de futebol. O que deveria ser uma festa transformou-se numa batalha campal, com enfrentamentos entre adeptos e o país em estado de sítio. Por outro lado, na Europa têm-se sucedido os atentados dum terrorismo quase self-service que responde às mais diversas inquietudes.

Crueldade gratuita, intolerância, ódio. O certo é que a violência cidadã está a aumentar para níveis tão óbvios que dispensam comprovação estatística. Que se passa com o nosso tempo?

Nos últimos anos de vida, Freud dedicou-se a contradizer grande parte daquilo que anteriormente tinha defendido. Tudo começou com a publicação de “Para além do princípio do prazer” (1920), onde já falava num hipotético “instinto de morte” que os seus seguidores imediatos não conseguiram absorver. Em todos os seres vivos, em todas as células, haveria um instinto mortal que combatia o da vida. Serviria para assegurar a sobrevivência e estava orientado ao meio externo, exceto quando as condições se tornavam tão difíceis de ultrapassar que se voltava contra o próprio. Tivesse o pai da psicanálise vivido mais duas décadas e talvez revolucionasse a sua própria teoria. Como isso não era possível, tivemos de esperar por Erich Fromm para que se deslindassem duas tendências do eu face ao meio: Ou era que o mundo é tão difícil e imprevisível que a única via percecionada para sobreviver é a da submissão absoluta, um comportamento que no extremo levava ao masoquismo; ou era que, pelas mesmas razões, há que controlá-lo e moldá-lo a nós, o que na sua radicalidade conduz ao sadismo.

Os sociólogos também pegaram no tema. Durkheim viu na origem do suicido quatro causas, duas das quais relacionadas com a falta de vínculos e conexões sociais.

Quando o indivíduo tem uma total incapacidade de integrar-se no meio externo, talvez se confronte com duas opções. A primeira, uma sensação de isolamento e impotência tão grande, que leva a atos que são simultaneamente de agressão e de suicido. A segunda, conduz à necessidade de encontrar um grupo, uma ideia nuclear, onde possa integrar-se e ter a solidariedade que, de outra forma, sente impossível. Esta integração revoluciona os conceitos de bem e mal e não será por acaso que grande parte dos perpetradores de crimes de intolerância foram eles próprios pessoas com um passado de excessos e de autodestruição, que encontraram no fundamentalismo um sublime que lhes deu uma justificação e lhes reorientou a vida. São os casos de Hasna Ait, que se imolou em Paris, ou de Muhammad Youssef, que em 2015 matou 5 marines em instalações militares norte-americanas no Tennessee.

Qual é a solução? Já Freud a procurou na célebre carta “O Porquê da Guerra” (1933) com que respondeu a outra de Einstein: “Tudo o que favoreça a formação de vínculos emocionais entre os homens deverá operar contra a guerra”. E, mais adiante, defende que aquilo que faça “os homens compartirem interesses importantes, produz esta comunidade de sentimento, estas identificações. E é nelas que a estrutura da sociedade humana em grande parte se baseia”.

As forças centrípetas da globalização estarão, talvez, a intensificar a quebra de laços sociais que já conhecíamos das grandes metrópoles. Os primeiros de entre esses laços destruídos terão sido os mais indefesos: Aqueles que têm origem em comunidades de sentimentos positivos. Abriu-se o caminho a outras, que se entrincheiram na repulsa e que recorrem à violência para sobreviverem.

Num mundo perdido em si mesmo, onde o ódio fortuito desponta, este será o momento para voltarmos a pensar e agir comunitariamente, incentivando laços e solidariedades onde o ser e a subjetividade se possam enquadrar de forma positiva e natural.


Luís Novais

Foto: Saed