domingo, 14 de fevereiro de 2016

DE CONSUMIDORES A PESSOAS. Estaremos numa revolução mental?



Talvez seja um fenómeno que ainda não está generalizado, mas os percursores aí estão e a História já nos ensinou que é com eles que o futuro se constrói.

Ao mesmo tempo que a classe média dá sinais de começar a reagir ao intenso ataque a que tem sido sujeita, há no ar um ambiente de mudança mental que parece adivinhar o fim de uma era de depredação consumista e o começo dum período em que o sóbrio e o simples suplantam o esbanjamento e a ostentação, ou, numa palavra, o consumismo.

Uma breve análise às lideranças que estão a conseguir uma repercussão positiva à escala global, ajuda-nos a compreender quais são os gurus do nosso tempo e, com eles, as tendências da atualidade.

Em primeiro lugar tivemos Pepe Mujica, o ex-presidente uruguaio, que na Conferência das Nações Unidas pelo Desenvolvimento Sustentável (Rio de Janeiro 2012), denunciou a ganância e a destruição do capitalismo consumista: “Pobre não é aquele que tem pouco, mas aquele que precisa de infinitamente muito, e deseja mais e mais”. A figura de Mujica ganhou repercussão mundial não só por intervenções como esta, mas pela condizente vida que levava na sua pequena quinta, onde produzia para auto-consumo, e pelo velho Volkswagen carocha que conduzia de casa para o palácio presidencial e do palácio presidencial para casa.

Este mesmo estilo de vida é levado por outro dos líderes mundiais com mais reconhecimento e apoio público: o Papa Francisco, que optou por não viver no pomposo palácio apostólico, mas num simples quarto da sua congregação.

O mesmo se verifica na vertente empresarial, onde o fenómeno de Steve Jobs não se justifica pelo seu êxito empresarial, mas pelo desprendimento com que comunicava, desde o discurso oral até ao tipo de roupa que vestia… ainda que paradoxalmente tudo tenha servido para incentivar consumo.

Estas lideranças icónicas são acompanhadas por um profundo debate filosófico, dominado pela apologia do decrescimento económico, que tem em Ivan Illich (1926-2002) um dos seus percursores e é conduzido por pensadores como Serge Latouche, que prefere falar em acrescimento (por analogia a ateísmo), querendo com isto dizer que devemos abandonar o dogma do crescimento como algo que se justifica em si mesmo, ou seja, como uma espécie de sucedâneo do bíblico “sou Aquele que é”.  

Há dias entrevistei Gastón Acurio, o grande artificie do reconhecimento mundial de que hoje goza a gastronomia peruana, que já é considerada a melhor do mundo pelo World Travel Awards. Depois de me oferecer um cebiche vegetariano, Gastón, que tem um dos restaurantes mais caros e faustosos de Lima, contava-me que vai alterar o conceito e torná-lo num espaço simples, onde a sustentabilidade seja a base de todo o conceito gastronómico. “Temos de partir para um modelo que respeite a natureza – dizia-me - Vamos ter apenas produtos de estação e fomentaremos o consumo de mais vegetais e menos carne ou peixe, porque o mar não aguenta a pressão que lhe estamos a fazer”. 

Depois desta entrevista, enviou-me um email com declarações dadas nesse mesmo dia pelo famoso chefe inglês Jamie Oliver, nas quais, além de citar Acurio pela sua preocupação com a dimensão social dos alimentos, fazia a apologia dos nutrientes naturais, criticava a alimentação ultraprocessada e afirmava que “a batalha contra os gigantes da alimentação é como aquela que se travou em tempos contra os gigantes do tabaco”. Nesse email, Gastón comentava-me que “não nos conhecemos, nunca falamos, mas estamos na mesma batalha”.

Pepe Mujica, Papa Francisco, Gastón Acurio, Jamie Oliver. Os indícios anunciadores do despontar de uma nova mentalidade são vários. Encontramo-los no reconhecimento que têm estes líderes que fazem a apologia da simplicidade. Encontramo-los nos movimentos filosóficos que contestam a depredatória necessidade do crescimento contínuo. Encontramo-los numa área tão fundamental como é a alimentação. 

Talvez seja um fenómeno que ainda não está generalizado, mas os percursores aí estão e a História já nos ensinou que é com eles que o futuro se constrói.

Depois de ser manipulada por campanhas maciças que a levaram a consumir mais e mais, a endividar-se, a querer aquilo de que não precisa, a ambicionar o que não podia usufruir... Depois de tudo, talvez esta seja a revolução mental com que a nova classe média se prepara para castigar os que lhe venderam, os que a endividaram, os que a levaram a querer o inútil e acessório. Se assim for, estaremos a viver tempos interessantes, aqueles em que a História se faz. 


Luís Novais

Foto: Unplash

Sem comentários:

Enviar um comentário