terça-feira, 27 de outubro de 2015

RIO DE JANEIRO, UMA EXPOSIÇÃO E “O QUE NÃO EXISTE MAIS”

Clovis Graciano, “Músicos” (1969) 

Foram trezentos anos desgastantes, estes que vivemos. Fizemos e desfizemos utopias, matamos e ressuscitamos deuses, navegamos bipolares entre razão e obscurantismo, levantamos altares a uma ciência que nos devolveu holocaustos, apostamos alma na matéria e ficamos sem nada, quisemos fazer mundos e o mundo era afinal terra que nos assentou sonhos. Estamos numa dessas fases, dessas em que tudo o que foi esperança de gerações passadas é agora desesperança.


A história das mentalidades decorre num contexto de esperanças, desesperanças e redobradas esperanças. Somos humanas e temos consciência, o que nos dá essa tão fantástica quão desesperante capacidade para entender que não somos entidade, mas entes, seres sem Ser. Não nos é possível esse alcance sem cairmos na tentação do aprendiz de feiticeiro, sem entrarmos no tão humano jogo de querer marcar e mudar o mundo. Podendo imaginá-lo, é impossível não tentá-lo; mas tentar é muito mais fácil do que alcançar. E eis o alento duma geração que rapidamente se transforma em desânimo, até que os seguintes seu próprio ânimo encontrem.

Lembro-me de ter feito esta reflexão num pequeno museu de Estrasburgo, quando fui observando as transfigurações mitológicas, fantásticas e realistas que se sobrepunham numa cronologia muito óbvia: Clássico, barroco, romântico, neoclássico. Recentemente, tive a mesma sensação no Rio de Janeiro, que além de me oferecer a sua beleza natural, me presenteou uma mostra de arte e um livro. Aquela, foi a coleção Santander de arte contemporânea, exposta no Museu de Belas Artes. O livro, foi a primeira obra dum escritor que não conhecia: “O Que Não Existe Mais”, de Krishna Monteiro.

A própria exposição convidava este casamento, que aí se procurava unir obras de arte plástica, com obras de arte literária. Poemas de Vitor Loureiro, ou Paulo Henriques Britto, lado a lado com quadros de Manabu Mabe, Milton da Costa ou Francisco Robalo.

A face opaca do mundo
Nos encara, fria e cega
É necessário enfrentá-la

Talvez tudo se resuma nestas palavras de Britto, também elas expostas no Museu. Talvez o problema esteja entre essa imperiosa necessidade de enfrentar, e a desalentadora ignorância de como fazê-lo.

Nas telas que se sucediam, cada artista com sua visão, a sua parte da poção transformadora. Absolutamente certos, uns, prenhes de dúvidas e desalento, outros.

John Graz, “Canoeiros” (1975)

Motivos relacionados com o trabalho, dum “Colheita de Café” (1953) de Manabu Mabe, dos “Músicos” (1969) de Clovis Graciano ou dos “Canoeiros” (1975) de John Graz. Quadros que nos levam fugindo para o regionalismo das “Casas de Ouro Preto” (1936) de Milton Costa e dos “Coqueiros de Itapuã” (1956) de José Pancetti. Artes que mostram uma crença nas mãos transformadoras, porque trabalham, porque tocam melodias que nos comovem; ou então na mudança pela regeneração, pela busca do que foi e já não é, uma antiga integridade apenas visível na natureza, no campo ou na velha urbe.

 José Pancetti, “Coqueiros de Itapuã” (1956)

“Fauna, Flora e Nativos Brasileiros” (1953) de Carybé, é já completamente indigenista, quase em desespero e não vendo qualquer reforma possível dentro dos nossos parâmetros civilizacionais, o artista parte em busca da harmonia dum autêntico bom selvagem, essa mesma harmonia que já não consegue encontrar no seu próprio contexto civilizacional. Entre o eu que conheço bem ser mau, e o outro que conheço mal ser bom, a opção pelo outro.

 Carybé
“Fauna, Flora e Nativos Brasileiros” (1953)


Desconcertados com a nossa incapacidade transformadora, já não cremos mãos, não cremos música nem procuramos mistérios em passados anacrónicos ou sincrónicos. Se à face opaca do mundo é necessário enfrentar, façamo-lo “Como se escala uma pedra/ É preciso penetrá-la/ Como se houvesse um lá dentro”.

A única forma de decifrar um enigma, é outro enigma que, por indecifrável, esconda quão real é o irreal.  Entramos em “Delirio” (1964), “Extase” (1964) ou “Sonho”, todos de Farnese de Andrade. Já não conseguimos a unidade perdida, eu e o outro são peças impossíveis de reunir, tanto que já sentimos estranhamento quando descobrimos que “É até curioso falar com um homem inteligente”(2010) de Flávia Metzler. Essa mesma desmultiplicação de eus que encontramos nas “Cabeças” (1995) de Siron Franco. E afinal, tudo se resume num “Enigma” (1989), de Gilvan Samico.

Gilvan Samico, “Enigma” (1989)
Mas “A face opaca do mundo/ Nos encara fria e cega”. “É necessário enfrentá-la”, sim. Mas como? Como, agora que as mãos não se provaram regeneradoras? Que o regresso nostálgico não reformou, que cada enigma por decifrar se tornou mais indecifrável pelo enigma decifrador?
Siron Franco, “Cabeças” (1995)


Flávia Metzler, “É até curioso falar
com um homem inteligente”(2010)
Mais más que boas, essas mãos, incapazes do bem, transformam-se em instrumentos do mal. “Howling for You” (2012) de Renata de Bonis. A perturbadora jovem imperturbada, essa que caminha, de costas para nós, rumo a bosque cinzentos, loiro cabelo, sangrentas mãos. “Howling for You”. Talvez este desconcerto do real, esta consciência dos limites, a era do fim dos sonhos, talvez tudo isto explique também o súbito fascínio pelo fantástico: duendes, mortos vivos, possessões. Não somos donos, nem de nós, nem do nosso querer, muito menos do humano destino. “Howling for You”.

Renata de Bonis, “Howling for You” (2012)




“O QUE NÃO EXISTE MAIS”
Será por acaso que descobri esta obra depois de ver esta exposição? Seria bom que tudo estivesse traçado por soberana mão, mas tão pouco sou decifrador de enigmas. Krishna Monteiro desvela-nos oito contos com vidas e pensamentos que rumam sem destino, talvez porque num passado longínquo já acreditamos no destino, talvez porque num outro tempo mais próximo estivemos certos de que, afinal, cada um seria dono do seu caminho e, por último, talvez porque  nos caiu o mito iluminista desse Homem que, graças ao conhecimento, seria bom; eis-nos sem crença salvadora.

Neste livro vemos passar sentimentos em catadupa e sem ordem aparente. A finitude e a incapacidade de aceitá-la, no conto que dá título ao livro. A perda dum pai que, aos olhos do narrador, teima em reaparecer, estando presente em cada objeto, em cada momento. Tudo isto resumindo outro dos nossos dramas: sabemos que somos, o que já não é pouco, e sabemos de insuportável saber que algures deixaremos de ser.

“As encruzilhadas do Dr. Rosa”, parecem ser as mesmas do homem do nosso tempo. Um registo quase onírico, que balanceia entre crenças. Uma batalha de inconciliáveis: o cientista que cura e o batista que purifica. Ou então nesse outro conto, tão simples como sendo apenas a história dum galo de combate. É narração do próprio animal, um conflito permanente entre o que deve ser e o que tem de ser, entre vida e luta, entre amor e ódio, entre luta e morte. Um personagem que balanceia entre o implacável e a autocomiseração.

As histórias sucedem-se e, um por um, vamos sentindo o mesmo desespero de cada personagem. Já não são Ícaros, que caíram, mas subiram, nem Sísifos, de tarefa inglória mas grandiosa. Já não é o mundo de Aquiles e Heitor. Já não ecoa a voz guerreira de Sarpedon, cuja consciência da morte é ânimo para imortalização: “Meu amigo, se tendo fugido desta guerra pudéssemos/ viver para sempre isentos de velhice e imortais,/ nem eu próprio combateria entre os dianteiros/ nem te mandaria a ti para a refrega glorificadora de homens” (“Ilíada”, Canto XII).


Foram trezentos anos desgastantes, estes que vivemos. Fizemos e desfizemos utopias, matamos e ressuscitamos deuses, navegamos bipolares entre razão e obscurantismo, levantamos altares a uma ciência que nos devolveu holocaustos, apostamos alma na matéria e ficamos sem nada, quisemos fazer mundos e o mundo era afinal terra que nos assentou sonhos. Estamos numa dessas fases, dessas em que tudo o que foi esperança de gerações passadas é agora desesperança. O mundo, o outro, voltou a ser um inalcançável que se observa, mas que funciona por si, sem ordem nem ordenador. Então, só resta o que restou a esse personagem que Krishna nos apresenta em “Um âmbito cerrado como um sonho”: “Além da janela, depois da ponte, acima da baía, o sol se põe. Quatro mulheres conversam, eu, refestelado sobre a almofada, observo-as pouco a pouco desaparecerem nos escaninhos do meu sono”. Assim, passivamente, seguindo o seu ritmo, sem alheia interferência, mortal e sem glória, numa palavra: “howlling”.


Luís Novais

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

DEVANEIOS PRESIDENCIAIS?



A esquerda portuguesa tem agora a sua oportunidade de fazer história e António Costa de provar que não andou a brincar connosco: Um candidato presidencial único e uma coligação eleitoral em Abril.

Começo por fazer uma declaração tão breve quanto clara: Sou contra a adopção da moeda única em Portugal e defendo que deveríamos sair da União Europeia. Acredito que o nosso contexto geoestratégico é atlântico e a nossa União natural é com o Brasil, Angola, São Tomé, Cabo Verde e Guiné. Numa palavra, defendo o sonho atlantista de D João VI, tão estupidamente interrompido pela burguesia portuguesa de 1820.

Como aparte que não conta para a substância do que aqui pretendo defender, digo também que sou contra a deriva neoliberal deste governo. Defendo o primado da política sobre a economia, a função distributiva do Estado e a existência clara dum setor público em áreas estratégicas. Sou contra a privatização da TAP.

Quem se der ao trabalho de ler o que já aqui escrevi no passado, percebe que o meu pensamento é claro neste dois grupos de matérias.

Feitas estas declarações, compreendo que uma coisa é o que eu defendo, outra muito distinta é que haja o direito de querer mudar radicalmente o rumo dum país, sem que haja um consenso muitíssimo alargado. Por agora, sei que estou no domínio da utopia, mas também sei que esse é o mesmo domínio em que estaria m aqueles que na Europa de 1940 defendessem a União que agora existe e que, afinal, começou a ser construída poucos anos depois, mas só depois que se foi gerando esse consenso.

É para isso que servem os utópicos: preparar o futuro quando ele chegue. Há dois modelos de mudança: um pela imposição ditatorial, que normalmente termina em tragédia, outro pelo reformismo, aquele que defendo.

Depois da recente declaração do Presidente da República, não faltaram vozes acusadoras: as mais brandas denunciaram-no como chefe de fação, as mais duras como ditador.

Creio que estas acusações significam uma deficiente compreensão daquilo que é a essência do regime democrático. O nosso modelo de Estado surge com o pensamento dos iluministas, esses “utópicos” do dealbar das monarquias absolutas. O seu modelo de soberania cidadã aprofundou-se, ao ponto de perceberem que há uma clara distinção entre Democracia e ditadura da maioria, e foi por isso que conceberam um sistema de divisão de poderes, de acordo ao qual uns controlam e limitam os outros.

Depois de Montesquieu este princípio foi aprofundado. Nuns casos criou-se mais do que uma câmara, noutros uma desproporcionalidade da representação, noutros ainda um poder intermédio, que não é executivo nem legislativo. Este é o nosso caso e não foi por acaso que se decidiu que o Presidente da República fosse eleito por voto universal, o que lhe dá uma legitimidade clara para, dentro dos limites constitucionais, entrar no jogo dos pesos e contrapesos da Democracia.

A decisão de Cavaco Silva está no estrito âmbito dos seus poderes constitucionais e esses poderes foram concebidos desta forma para que, em momentos como o atual, alguém os possa usar para criar peso e medida. Foi isso que o Presidente fez, concordemos ou não.

Ultrapassada esta questão, fica-nos a de chefe de fação.

Nas palavras do Presidente não está claramente dito que jamais empossaria um governo de que fizessem parte forças antieuropeias e anti Nato (repito: eu sou antieuropeu e por mim até podíamos sair da Nato), mas infere-se que dificilmente o fará e, sobretudo, nas condições pretendidas pela dupla Costa/César.

Mais uma vez, dentro do limitado campo de ação que tem o Presidente da República, há momentos chave em que lhe compete interpretar o sentido do país. Aconteceu noutras circunstâncias. Aconteceu com Soares quando dissolveu a Assembleia da República em 1987, apesar de lhe ter sido apresentada uma solução de governo maioritária à esquerda. Há dias João Cravinho explicou na televisão que, nesse momento, Mário Soares interpretou a representatividade do PRD como já não sendo real e decidiu convocar o soberano; tinha razão. Aconteceu em 2004 quando Jorge Sampaio fez cair um governo com suporte parlamentar. Sampaio interpretou que o sentimento dos portugueses não era favorável àquele figurino governativo e convocou eleições; tinha razão. Aconteceu agora com Cavaco Silva: competiu-lhe julgar se a aliança pós-eleitoral das esquerdas correspondia ou não à vontade dos eleitores. Concluiu que não e indigitou Passos Coelho. E a meu ver também tem razão; julgo que, de facto, tal aliança não corresponde sequer à vontade da maioria dos eleitores dos três partidos.

Tudo isto é normal e constitucional. Curiosamente, muitos dos que defenderam Sampaio em 2004, atacam agora Cavaco por alegadamente extravasar funções… conforme a conveniência, não podemos ser à vez, ora muito presidencialistas, ora muito parlamentaristas.

Devo dizer que tinha algumas esperanças de que a esquerda se entendesse. Achava, como acho, que no momento atual há poderes económicos que têm de ser refreados e que uma força como o Partido Comunista é capaz de impor respeito. Mas uma novidade destas tem de ser feita de forma clara e não nos corredores. No mínimo, que houvesse o tal acordo que foi tão falado como nunca visto, na melhor das hipóteses que houvesse uma coligação eleitoral, ou que na campanha se assumisse a possibilidade de entendimentos parlamentares. Em vez de fazer isso, António Costa fez o contrário. Porquê? Porque sente que o Presidente tem razão: a maioria do seu eleitorado não quer esse acordo e uma parte iria indubitavelmente votar na coligação de direita.

Graças à compreensível cautela presidencial, a esquerda portuguesa tem agora a sua oportunidade de fazer história e António Costa de provar que não andou a brincar connosco: Um candidato presidencial único e uma coligação eleitoral em Abril. Acreditam nisso? Eu também não. Então Cavaco estava certo.



Luís Novais

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

ANTÓNIO COSTA NO SEU LABIRINTO



Neste momento, António Costa está na camisa-de-forças em que ele mesmo se meteu. Coliga-se com a direita, e perde eleitores à sua esquerda. Coliga-se com a esquerda depois dum acordo que assuste os mercados, e escapam-lhe para a direita. 


Há momentos na política que exigem uma velocidade capaz de surpreender o adversário. Nessas alturas, a mínima lentidão permite escavar trincheiras, e não é preciso recuar 100 anos para saber como estas posições imobilizam qualquer contenda.

António Costa deveria sabê-lo. Depois de fazer cair Seguro com a célebre frase da vitória por “poucochinho”, exigia-se-lhe o primeiro lugar com um resultado expressivo. Em vez disso, perde por muitos e foge para a frente tentando ser primeiro-ministro, apesar do resultado que, contra toda a previsibilidade política, sofreu.

Tendo capacidade de encaixe e jogo de cintura, poderia salvar-se com uma coligação à esquerda que, não sendo contra-natura ou ilegítima como se diz, contraria a tradição. Mas enfim, esta existe para ser rompida, haja força e argumentos para consegui-lo. Derrotado nas urnas, disposto a fazer uma aliança extraordinária, o mínimo era conseguir ser rápido, correr, galgar a onda e os adversários, antes que se abatesse, aquela, e se entrincheirassem, estes.

Não conseguiu. O PCP usou o lastro da sua experiência e disse-lhe nim: que avançasse na prancha rumo ao mar de tubarões, e que nem era preciso qualquer acordo. Quanto ao Bloco, ainda não absorveu a sua nova dimensão e, sobretudo, não tem a previsibilidade de anos e anos de jogos e de cumplicidades internas, com as inerentes interdependências. Por outras palavras, é um partido em que todos são muito livres e isso dificulta o estabelecimento de compromissos internos, tanto que Catarina teve de vir a terreiro dizer que quem fala pelo partido é ela.

Entretanto passaram 15 longos dias. Dentro do PS, barões e duques já deram o abraço de anaconda, bem explicito nas declarações de Jorge Coelho: “Tem de ser um acordo sólido e transparente. Tudo escrito e assinado”… ou seja, aquilo que bloquistas e comunistas não podem dar, sob pena de passarem para si o ónus do eclipse político no médio prazo. A estocada final está dada por Passos Coelho que, com ou sem razão, conseguiu passar a imagem do bom rapaz disposto a partilhar a bola com um adversário que, sem a ter, a quer para si. O último desafio foi muito claro: Se quer influenciar a governação, então venha jogar, não só com a nossa bola, mas dentro da nossa equipa.

Neste momento, António Costa está na camisa-de-forças em que ele mesmo se meteu. Coliga-se com a direita, e perde eleitores à sua esquerda. Coliga-se com a esquerda depois dum acordo que assuste os mercados, e escapam-lhe para a direita. Excluída, parece a hipótese de que se coligue sem que os ditos mercados se assustem: nem comunistas nem bloquistas estarão na disposição de perder a sua base eleitoral apenas para que o Partido Socialista possa nomear um primeiro-ministro.

Resta-lhe o caminho da oposição, o que salvaria o PS, mas seria o seu fim político. O partido já percebeu isto, e não é difícil supor qual será a parte mais fraca.

Para alguém que sempre se dedicou à política, imagina-se que quão doloroso poderá ser: chegar aqui e morrer na praia, depois de abandonar Lisboa e um leque de outros voos que o percurso de Jorge Sampaio bem demonstra. Quanto mais depressa António Costa cair na real, mais ganha o PS, a esquerda, a direita e o país… enfim, peso a mais para um só homem. É duro, sim; compreende-se, mas como diria outro ex-secretário-geral, “É a vida!”


Luís Novais

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

DUAS SÉRIES (Fargo e Breaking Bad) E UMA REFLEXÃO

A pressão socialista que se acentuou na segunda metade de oitocentos e o terror à revolução bolchevique de 1918, com a consequente criação da poderosa União Soviética, fizeram com que o capitalismo se autorreformasse, em variantes social-democratizantes na Europa, ou de ascensão económica individualista nos Estados Unidos. No fim do século XX, a queda do muro de Berlim e a globalização financeira aliviaram esse pânico e fizeram com que a promessa de ascensão se limite hoje a um vago culto do empreendedorismo; estratégia individual que putativamente estaria ao alcance de todos e que a todos permitiria uma plena realização económica e, supõe-se, também humana.

Nos dias que correm, isto é tudo o que o sistema tem para oferecer a um grupo social que é naturalmente efervescente. Enquanto se acumulam os escândalos financeiros e de corrupção, resulta claro que vivemos numa estagnação proletarizadora dos escalões intermédios da pirâmide social: A anteriormente forte classe média, pouco mais futuro pode antever do que uma luta diária pela mera sobrevivência, à espera duma reforma  incerta e recortada.

Cada vez mais novos sabemos aquilo que vamos ser em velhos, e isso matou a esperança, essa grande dinamizadora do progresso e da paz social.

Atravessamos tempos muito parecidos com os de Rodión Raskólnikov, esse anti-herói que Dostoievski retratou em “Crime e Castigo”, e que a custo conseguia manter as aparências duma classe média cuja ascensão estava vedada pela aristocracia rentista, a mesma que açambarcava zelosamente cada migalha dum regime já então em plena decadência.

Esta reflexão é-me suscitada porque comecei agora a ver essa série que adivinho excepcional: “Fargo”, de Noah Hawley. Uma opção que se segue a ter devorado todos os capítulos de “Breaking Bad” de Vince Gilligan. As duas séries revelam como dois homens, ambos de meia-idade, ambos de classe média e ambos falhos de sonhos, rompem a barreira da inevitável decadência, através do poder psicológico que lhes é dado pela prática quase casual dum primeiro crime, que suscitará uma cascata incontrolável.

São personagens que têm tudo a ver com Raskólnikov, um pobre-diabo que se engrandece pelo materialmente desnecessário e cruel assassinato de Ivánovna, a desprezível usurária.

Tal como em “Crime e Castigo”, a generalidade do público vai gradualmente empatizando com os dois criminosos, e o êxito destas séries deveria fazer-nos refletir sobre o abismo para que se dirige o nosso modelo social. Apesar dos devaneios libertários e maçónicos de Pedro, o personagem que Tolstoi tão bem desenvolveu em “Guerra e Paz”, sabemos o fim para que caminhava a sociedade Czarista. E nós?


Luís Novais

Uma nota a 2 de Agosto de 2016: Depois da vaga de atentados que estão a varar a Europa e os Estados Unidos, pergunto-me se o êxito destas séries não seria anunciador do que aí vinha. Teremos de retornar ao velho Dostoievski e a "Crime e Castigo" para perceber as intrincadas motivações de tudo isto?...