quarta-feira, 22 de abril de 2015

REVISITANDO O PRÉ-MARXISMO

Estátua de Marx e Engels em Berlim
É na sua tradição anterior a 1872 que a esquerda de hoje procura encontrar as ferramentas ideológicas com que vai enfrentar o século XXI. Proudhon e Bakounine ressuscitam, Marx e Engels volteiam no túmulo.

Noticias Aliadas, uma agência noticiosa com tendência de esquerda, decidiu comemorar os seus 50 anos organizando em Lima uma mesa redonda sobre a agenda política dos movimentos sociais na América Latina.

As intervenções couberam ao jornalista internacional Ramiro Escobar, ao economista e ex vice-ministro peruano Hugo Cabieses, ao escritor Raúl Zibechi e à indigenista Melania Canales (devo dizer que sou amigo dos dois primeiros). Tanto os oradores como a assistência, cedo levaram o debate para o tema da identidade da esquerda nos dias de hoje; uma discussão que, além de ser mais geral, é também mais interessante.

Descentralização, organizações horizontais, desinstitucionalização, fragmentação eventualmente federativa dos movimentos, respeito pela diferença cultural e étnica. Todos estes conceitos foram abordados como uma base para a renovação.

Hoje em dia, a força regeneradora estaria numa juventude que se organiza informalmente e que quer uma sociedade mais justa, sem acreditar nas estruturas partidárias. “O meu partido (Partido Socialista do Peru) está afastado, os poucos que aparecem são vaiados sempre que pretendem falar”, disse Cabieses.

Há nisto tudo uma estranheza que não surpreende e que vem da História. O V congresso da Internacional (1872) clarificou as águas do movimento socialista mundial, hegemonizando o centralismo marxista e afastando a corrente anarquista vinda dos tempos de Proudhon e que, à época, era protagonizada por Bakounine. A posterior vitória Bolchevique em 1917 e o princípio geral da Ditadura do Proletariado em que assentaria a novel União Soviética, tiveram o impacto que é conhecido na esquerda do século XX, consolidando a sua caminhada no sentido do centralismo.

Inimigo comum das democracias liberais e do socialismo soviético, o anarquismo seria alvo duma intensa campanha de desinformação que durou quase 100 anos, e que deturpou uma ideologia que nada tem do preconceito genericamente vigente. Como resultado conseguiu-se que uns o rejeitem primariamente pelo que não é, e que outros adiram irracionalmente como se fosse aquilo que nunca foi.

Curiosamente, parece ser nesse baú que a atual esquerda procura as recordações com que se pode renovar.

Voltemos à mesa redonda da Notícias Aliadas.

Depois de afirmar que “sou de esquerda desde os meus 19 anos”, Hugo Cabieses, que agora tem 65, referiu o recente despertar da esquerda latino-americana para as especificidades e direitos dos nativos: “Antes, a selva era apenas um refúgio das guerrilhas e os povos autóctones não eram mais do que carne para canhão das suas guerras”.

Antes de Cabieses, Melania Canales, uma indígena da região de Ayacucho, Peru, fizera um apelo a que se "construa o país a partir das nossas diferenças”, acentuando que “não queremos um Estado centralista, homogéneo e impositivo”.

Organização horizontal, multipolaridade e respeito pelas diferenças étnico-culturais. São modelos que o racionalismo marxista jamais poderia aceitar: o relativismo cabe tanto na liturgia do Vaticano, como na do materialismo dialético.

Concluindo, é na sua tradição anterior a 1872 que a esquerda de hoje procura encontrar as ferramentas ideológicas com que vai enfrentar o século XXI. Proudhon e Bakounine ressuscitam, Marx e Engels volteiam no túmulo.



Luís Novais

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