domingo, 6 de novembro de 2011

Sonhos por um Sonho













Que momentos são estes
em que pens’o que não pensei?
Sei hoje tão caro,
um sonho a ser.
Pagámo-lo em sonhos,
d’esses que abdicamos
para um só sonhar.

Olho em frente,
lá o vejo distante.
Para os lados,
vejo os  d’outros:
desses que sonham
os sonhos com que paguei.

Vejo-os
e julgo-os felizes.
Tanto, quanto sei
quando me vêem
me julgam a mim.

E prossigo pagando.
E sonhando
pagando me vou:
Sabend’os que perco,
Sonhand’o que ganhe.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Da Europa-instituição à Atlântida sonhada.

Tão zangados andamos nos dias de hoje. Compreende-se: primeiro o sonho de uma grandeza; a de ontem. Depois o embate com uma pequenez; a de hoje. E assim destilamos tudo: destilamos em remorsos e destila cada português achando que é melhor do que Portugal.

Aquilo que nos deixam, em confronto com aquilo que nos sonhamos, enfim.

E o que nos deixam é que nos amarremos à fatalidade da Europa instituição, não da Europa espaço cultural, que dessa também somos, mas a esta centrípeta Europa dita União. Desta nunca fomos, desta sempre fugimos para que continuássemos a existir.

Estamos na Europa-instituição por fatais razões quantitativas. E estamos nessa Europa sem que essa Europa esteja em nós. Porque a Europa dita União foi criada para resolver problemas que nunca foram os nossos: problemas com raízes que são históricas, problemas com raízes que são geográficas. Problemas que começam no século VI. Problemas que vão de Espanha à Hungria. Enfim: as questões históricas dos Impérios continentais e de seus eternos confrontos. Problemas dessa mesma Europa que tão metaforizada está na opção napoleónica: vender a Louisiana para combater no continente. Desistir do além para fincar pé no aquém.

Foi para resolver as questões desta Europa continental que a Europa-União surgiu.

Acontece, porém, que Portugal sempre fugiu a ser ator desse palco. É certo que momentos houve em que nos forçaram a participar da tragédia. Mas sempre que tal nos aconteceu: afundamo-nos em armadas que se diziam invencíveis.

Se continentais fôssemos, já portugueses não seriamos. Se continentais fôssemos: de nós só reminiscência restaria, tal qual um desses reinos que hoje mais não são do que heráldica no escudo Bourbon.

Talvez seja essa a razão do nosso desconforto. Estamos desconfortáveis porque intuímos esta desadequação. Para um lado: aquilo que sentimos que somos. Para o outro lado: aquilo para onde nos obrigam a caminhar. E obrigam-nos sem que aqueles que nos obrigam se emocionem com a causa: “tem de ser”, dizem-nos, “tem de ser porque não temos dimensão”, “tem de ser porque a economia é global”, “tem de ser porque não temos viabilidade”, “tem de ser por causa da dívida que está em euros”, “tem de ser para que não nos fustiguem os mercados”… Não há quem aguente tanto “ter de ser”!

Esforçamo-nos para tentar vestir esta pele que nos espartilha. E assim espartilhados: ficamos entre a impossível dimensão dum passado que foi nosso e a realidade duma Europa criada para resolver problemas dum passado que foi o de outros.

E espartilhados que estamos: o discurso fica desolador. Perdemos toda a nossa energia a tentar dimensão épica no comezinho: mais um ponto ou menos um ponto num deficit e Aquiles matou Heitor. Sim ou não a um comboio e Ulisses fugiu à terrível Calipso. Uma tranche conseguida à Troika e o herói chegou a Ítaca. “Não somos a Grécia” e o cavalo entrou em Tróia… E enfim: quando ficamos com uma terrível sensação de vazio: temos os recorrentes debates: tão estéreis quanto serôdios: a bendita regionalização e outros que tais. Acrescente-se uma mão cheia de estrangeirados de pendor anglo-saxónico. São estrangeirados como convém aos estrangeirados : uma minoria: uma elite que adora a sua pequena expressão quantitativa compensada pela desproporcionada vénia institucional. Dizem benchmark em vez de exemplo e dizem goals em vez de objetivos.

Eu tenho uma razão para não me apegar a estrangeirados. Num país em crise é muito fácil sair e depois chegar debitando receitas. Claro que o problema é sempre o mesmo: não funcionam, as receitas dum doente aplicadas a outro. O pombalismo terminou na viradeira e a viradeira terminou em guerra civil. Valesse-nos o que não deixamos que nos tivesse valido: D João VI e o seu sonho de um reino Atlântico; sonho tão ingloriamente destruído por esses “iluminados” de 1820 que queriam fazer de Portugal uma nova França.

E no entanto, há caminhos para trilhar, novas velas a desfraldar. Façam-se duas viagens. A primeira que comece em Madrid e acabe na mais recôndita vila da Europa central. Feita esta, parta-se para Cabo Verde, passe-se por Luanda e termine-se no mais recôndito lugarejo de Mato Grosso ou da Rondónia.

Imaginemo-nos de regresso. Reflicta-se. Onde nos sentimos em casa? Onde deveríamos estar? Qual a União por que deveríamos estar a trabalhar? Qual a que faz mais sentido? E o que faz sentido em Lisboa não fará também sentido em Luanda e em Brasília? Na Praia e em Bissau?

E não é uma questão de não gostar dos outros: dos europeus. Claro que sim. Há muito, há imenso, de Europa em todos nós. É tão só uma questão de nos descobrirmos, de sermos por nós, de deixarmos de ter os olhos num chão chamado deficit para os colocarmos num horizonte chamado “cumprirmo-nos”. Cumprirmo-nos num espaço onde estamos com naturalidade, um espaço a que por sonho chamo Atlântida, que talvez a Atlântida mais não tenha sido do que um sonho. E a mim agrada-me: dar o nome dum sonho a um sonho. Mas isto sou eu que sou diletante. Que não consigo viver sem a minha utopia.

terça-feira, 14 de junho de 2011

A Propósito de “Zapping Sobre as Madrugadas Idênticas”

A Propósito de “Zapping Sobre as Madrugadas Idênticas” de Eugénia Brito.
Na sessão de apresentação da obra em Braga, Maio de 2011

É para mim uma experiência nova, esta de subitamente passar para o lado de lá. O lado que não é o de quem escreveu e submeteu a sua obra a uma crítica, seja ela académica, jornalística, de café ou, como acontece ser o caso, a de alguém a quem o autor pediu que lhe fizesse uma apresentação, que é o que a Eugénia me convidou para aqui fazer, o que, devo dizer, depois de ler “Zapping sobre as madrugadas idênticas”, me deu grande satisfação e uma pitada de orgulho.
Estou habituado a participar neste tipo de sessões, não como apresentador ou comentador, mas como autor. Não sendo um teórico do assunto e muito menos querendo postular, consigo talvez fazer alguma teleologia sobre as formas de apresentar um livro, o que advém do facto de ter assistido a umas boas dezenas de apresentações de livros meus, levadas a cabo por diferentes amigos, desde colegas que também são escritores a académicos, desde jornalistas a activistas sociais, passando por sociólogos e filósofos, historiadores e um realizador de cinema.
Fruto desta experiência, diria que há talvez um primeiro tipo de apresentação, que eu diria ser a de intervenção, e onde se procura detectar na obra os seus factores de desassossego e dela retirar aqueles aspectos que podem contribuir para a inquietação social e, assim, para a mudança.
Há também as apresentações de sentimento, que têm por objecto todo um conjunto de emoções que poderão ser despertadas no leitor.
Há, por último, as de contexto, que têm como preocupação inserir o livro no devir, no movimento histórico.
Certamente que as academias literárias poderiam encontrar inúmeros outros formatos e, até, eventualmente, estar em desacordo com a divisão que acabo de fazer. Repito, sou apenas um escritor e uma pessoa minimamente atenta; estou apenas a falar daquilo que é fruto da minha observação directa e tenho zero preocupações especulativas, reduzo-me à minha insignificância, portanto.
Tudo isto para dizer que o tipo de análise que, em minha opinião, melhor se adequa a “Zapping Sobre as Madrugadas Idênticas”, é esta última, a de contexto. Trata-se de uma opinião a que, reconheço, não será alheio o facto de esta ser a área que mais me excita: o tempo e a sua influência na pessoa, ou, se quiserem, para recorrer ao título de Heidegger, “O Ser e o tempo”. Para além disso, tem também a vantagem de nos resolver o difícil binómio que é o de falar na obra sem a revelar: integramo-la, assim, no seu tempo ao invés de falar da obra em si mesma.
Independentemente do meu próprio contexto, creio contudo que “Zapping Sobre as Madrugadas Idênticas” apela a este tipo de análise. Apela, quer pela sua estrutura interna, quer pela temática, quer ainda pelas preocupações que revela.Pela estrutura interna, desde logo, porque é um livro que se passa em duas épocas distintas. Isto apesar de, curiosamente, ter apenas um narrador. Por um lado, temos aquelas que são as metafóricas madrugadas dos inícios do século XX, quando a humanidade enfrentava aquela que era a guerra mais mortífera e destrutiva que jamais vira, a primeira. Pelo outro lado, temos as madrugadas de hoje, envoltos que estamos num sistema que é talvez o mais destrutivo da humanidade do ser humano. (...)




A versão completa deste texto está disponivel em formato PDF: para download clicar aqui.








quarta-feira, 8 de junho de 2011

Comunicado

Comunicado


Comunico que morri,
que me morri.
Não sei s’em morto eu
morto será o “eus” também,
se mortos serão todos:
esses que são eu.

Ou se morto é este só;
o tal que se diz mim.
Mas que morri morri,
ainda que d’eus todos
possa eu só morrer.

Sorte tantos ser ou ter
qu’assim morrer m’é morrendo.
Morrem os eus morrendo,
cada eu num instante.

E agora penso:
poderei morrer,
se em letras não repouse?
Sem linhas para quês?
Sem linhas de porquês?

Por isso não morro.

Letras não escrevo,
que s’as escrevo
já matar me não mato.

Matar não me mato,
que morrer não posso
se escrever não escrevo.

Escrevo-as. Escrevi-as.
Oiço toque que toca:
alguém que me chama.
Sei quem é, o que é.
E quero morrer,
novamente morrer;
comunicar que morri.

Mas chamam-me
e já não posso morrer,
que nestas letras pousei
tantos para quês
em porquês não destilando.

Errata:

Comunico que vivo,
que me vivi.
Do eu que morri,
em vivo me fiz.
Vivos serão todos,
os que mim se dizem?
Não. Algum terá morrido,
desses que vivos se crêem.
Todos lá chegarão,
e de tanto lá irem
já de lá sem regresso.
E não restará um,
nem um, para voltar
e comunicar que vive.

Aí, ai aí sim, aí morri;
sem que possa sequer dizê-lo: morri.
É isso o morrer:
é não poder dizê-lo
é não poder escrevê-lo.

E assim morro sem morrer:
Comunico que me morri
morrendo me vivi.

sexta-feira, 11 de março de 2011

A propósito de “No País das Porcas Saras” de Fernando Évora.

O último alentejo que eu lera fora o de Saramago. Esse alentejo das lutas de um povo, narradas ora com rudeza realista, ora com traços mitológicos, em “Levantado do Chão”.

Saramago, falava-nos do Alentejo que nos legou a ditadura. Terra de tragédias mil e fomes tantas. Mas também terra de ideais grandes, de feitos, de heróica resistência.

E de repente, Fernando Évora pôs-me à frente um outro Alentejo. Este nosso, o de agora e que é o legado, já não da ditadura, mas de quase 40 anos duma democracia que, porque centrípeta, é talvez apenas uma aparente democracia, disfarce de oligarcas.

Um Alentejo onde o desespero deu e dá lugar à fuga, onde a luta foi substituída pela anestesia social e o sublime da ideia, pela concorrência entre rimadoras para mais aparecerem num qualquer despertino ou vespertino programa da TV ou da Rádio.

É este Alentejo aparentemente domesticado pelos donos do poder político-económico que Fernando Évora despe, numa linguagem sabiamente popular, sabiamente simples; um estilo regional, aqui e ali a lembrar esse escritor maior da nossa língua que foi Guimarães Rosa, o mesmo que, curiosamente, também desponta em algumas passagens de “Levantado do Chão”.

Mas, Fernando não nos lega apenas o desespero sem saída. A esperança ali está, bem à frente dos nossos olhos, incubando naquela menina que colecciona porcas saras. Essa menina que é uma promessa de despontares, de futuros ressurgimentos. Quiçá, um ressurgir que será ressurgir do próprio Portugal, ou não tenha sempre o Alentejo sido a ponte que Portugal estende a Portugal.

Se a importância duma obra também está no devir que nos apresenta, atrever-me-ia a dizer que ninguém deveria ler “Levantado do Chão”, sem partir em seguida para a terra onde vivem as personagens que Fernando Évora criou: “No País das Porcas Saras”.

sábado, 22 de janeiro de 2011

A Grande Apropriação, ou, a Falácia do estado Social

O processo de industrialização maciça que foi ocorrendo ao longo do Sec. XIX trouxe consigo novos problemas sociais. O êxodo para as cidades industriais e, consequentemente, o crescimento brusco de novas mega metrópoles, foi feito à custa do caos urbanístico e duma generalizada insalubridade, que obras de autores como Charles Dickens ou Mark Twain bem ilustram.

Perdidas que estavam as ligações familiares e de proximidade típicas das sociedades rurais, muito se tem falado da perda de laços de solidariedade entre as multidões dos ex-aldeões que, por via de grandes movimentos migratório, engrossaram as fileiras do operariado.

Esta ideia, contudo, é desmentida pela auto-organização de que os membros destas classes deram provas, associando-se em instituições mutualistas de apoio à doença e velhice. Em Inglaterra, por exemplo, as Friendly Societies contavam com 1 milhão de sócios em 1850 e 4 milhões em 1872. Em 1913, na Alemanha, 16 milhões de operários estavam associados em diversas caixas de invalidez e velhice (Y. Lequin).

O modelo era simples: através da quotização de todos os seus membros, uma determinada associação assistencialista apoiava aqueles que, de entre eles, se encontravam em dificuldades, de saúde, nuns casos e até financeiras, noutros.

Igualmente fruto da auto-organização daquilo a que hoje chamaríamos “sociedade civil”, foram surgindo inúmeras cooperativas de consumo que pretendiam salvaguardar produtores e consumidores dos ataques especulativos e garantir, assim, um controlo sobre o preço dos bens de consumo. Por volta de 1860, esta tendência alargou-se ao crédito com o aparecimento de associações de crédito mútuo, com origem na Alemanha.

O mais interessante deste modelo é a sua espontaneidade e o fato do seu aparecimento e expansão não ter dependido de qualquer orientação estratégica de cima para baixo. Pelo contrário, ele aparece e frutifica a partir da base; a partir das diversas comunidades que são as suas beneficiárias. Associações por vezes muito pequenas, mas com uma ligação muito grande aos seus utentes e, portanto, geridas e controladas graças a essa proximidade, o que lhes permitiu funcionar com uma estrutura burocrática bastante leve.

É deste movimento que o Estado se vai aproveitar para começar a criar aquilo que é, hoje, a mastodôntica burocracia do Estado Social. O melhor exemplo disso mesmo está em Inglaterra. No sul de Gales, a associação de socorros mútuos Tredegar Medical Society, fundada em 1870, garantia assistência médica aos seus associados, essencialmente mineiros, com um corpo permanente de cinco médicos, um dentista e um fisioterapeuta. Aneurin Bevan, o fundador do National Health Service em 1948, conhecia bem esta organização já que era deputado eleito precisamente pelo círculo de Tredegar. E terá sido na Tredegar Medical Society que se inspirou para criar o serviço de saúde pública do Reino Unido (C. Ward).

É óbvio que, apercebendo-se das verbas que estariam implícitas numa escala nacional, os adeptos da centralização acabaram por fazer tudo o que puderam para acabar com as associações de socorros mútuos, nacionalizando indiretamente o rendimento disponível da população que, até aí, era entregue sob a forma de quotas a estas organizações de tipo comunitário. Tudo isto, claro, à custa duma gigantesca máquina burocrática e de emprego político que, como sabemos, está hoje à beira do colapso mas que, antes de colapsar, conseguiu acabar com o mutualismo. Simbolicamente, a Tredegar Medical Society acabaria por encerrar em 1995.

Feito este caminho, o que temos hoje é um Estado Social fundado na apropriação coerciva do rendimento disponível das populações. Um rendimento que, se as coisas tivessem seguido o seu rumo natural, estaria agora a ser gerido por pequenas e médias organizações comunitárias de âmbito territorial ou social, com uma profunda ligação aos seus utentes, porque por eles criadas, geridas e controladas. Organizações que, tanto pela sua dimensão como pela proximidade ao utilizador, teriam, como tinham, uma estrutura burocrática muito leve.

Ora, esta leveza de estrutura o Estado não consegue nem quer assegurar e, não podendo já suportar o peso de tamanho gigantismo, está hoje e cada vez mais a servir de mero suporte a grandes grupos financeiros que encontram justificação política em alguma optimização organizativa que os governos não alcançam, claro que, muitas vezes ou sempre, à custa da qualidade do serviço prestado ao utente. Um utente que, do ponto de vista do poder de reivindicação, lhes é distante e, como tal, pode ser desprezado. Um utente que no Sec. XIX começara a criar a sua própria organização com uma autonomia que teve de ser destruída para que o serviço que lhe é prestado deixasse de ser seu e comunitário e para que acabasse, afinal, naquilo em que está a acabar: num grande negócio para poucos, num mau serviço para todos.

domingo, 16 de janeiro de 2011

O Capitalismo sem o Espírito do Capitalismo.


Na sua obra mais famosa, “A Ética Protestante e o espírito do Capitalismo” (1905), Max Weber procurou encontrar fatores económicos e sociais com que definir o capitalismo, destrinçando-o de outros modelos coevos e do passado.

Aquilo que Weber viu no capitalismo foi o contrário das acusações que hoje lhe são frequentemente feitas: ser um sistema conduzido pela ganância e pela falta de ética. Também no tempo de Weber, seriam já muitos os que fariam essa conexão. Uma ideia contestada pelo sociólogo alemão quando este lembrou que “instinto de lucro, sede de ganho, de dinheiro, do maior ganho monetário possível, não têm absolutamente nada a ver com o capitalismo. Esta aspiração encontra-se e encontrou-se em criados, médicos, cocheiros, artistas, prostitutas, funcionários corruptos, soldados, salteadores, cruzados, jogadores, mendigos (…), em todas as épocas e países do mundo (…). Uma sede de ganho ilimitado de modo nenhum é idêntico a capitalismo.”

O que distingue, então, o capitalismo, de outras formas de aquisição de riqueza? Weber pega em textos de Benjamim Franklin, escritos entre 1736 e 1748, como exemplo de uma ética própria que estaria na base do espírito capitalista: “Lembra-te que o dinheiro tem uma natureza reprodutora e fecunda. O dinheiro pode produzir dinheiro que, por sua vez, produzirá mais dinheiro e assim sucessivamente (…). Quem mata uma porca aniquila a sua descendência até à milésima geração. Quem destrói uma moeda de cinco xelins, assassina tudo o que poderia ter sido produzido com ela: pilhas e pilhas de libras esterlinas.”

Ora, o capitalismo estaria precisamente ligado a esta moral: uma ascese relativamente ao dinheiro, ou, mais prosaicamente, a não comer a tal porca para que ela continue a dar gerações que, qual moeda de cinco xelins, também não serão sacrificadas para que prossigam a sua reprodução. Um certo espírito de sacrifício, portanto, em que o fado de cada um seria altruisticamente produzir mais e mais e consumir menos e menos.

Ou seja, uma sociedade de produção e não uma sociedade de consumo, se é que aquela pode subsistir sem esta, algo em que Franklin não parece ter pensado. Ou talvez sim. Talvez sim, porque muita coisa mudou entre este espírito do capitalismo de meados do século XVIII e o capitalismo que hoje temos. E o que mudou foi que o capitalismo estava, nesse tempo, longe de ser o sistema económico e social dominante, num Ocidente que ainda não havia tido a Revolução Francesa,que foi a maioridade política da burguesia, e ainda estava agarrado a ideias e modelos do Antigo Regime, alguns dos quais vindos diretamente do feudalismo medieval. O capitalismo que Franklin advogava era, assim, não um sistema dominante, como o é hoje, mas algo quase que de seita; neste caso herdado e advogado numa colónia que fora, ela própria, refugio para seitas religiosas e que só viria a ser país quase quarenta anos após os citados textos.

O espírito capitalista terá, assim, germinado neste caldo mental onde, ao fator trabalho se juntava a parcimónia. Um sistema, digo eu, incapaz de funcionar fora desta ética e que, sem ela, em nada se distingue da tal ganância que, como notou Weber, sempre se verificou ao longo da história, do cruzado ao salteador, do cocheiro ao funcionário corrupto.

De então para cá muita coisa mudou. De uma crença quase religiosa duma quase seita, o capitalismo tornou-se no sistema dominante. Aconteceu-lhe, por isso, aquilo que teria de lhe acontecer e que é o mesmo que acontece a todas as seitas quando deixam de o ser para passarem a ser o sistema: perdem a pureza inicial que é, afinal, o seu espírito, o seu cimento.

Isto mesmo acontecera já ao cristianismo que, de religião humanista dos mais pobres de Roma, se tornou, com a sua passagem a sistema religioso dum universo, na religião dos cruzados, dos impérios e da inquisição. Aconteceu a muitos outros sistemas na sua passagem de seita a modelo global e também ao capitalismo que, de quase religião de alguns, se transformou num sistema económico que, de tão dominante e generalizado, já não podia ser unido pelo cimento da sua ética original e foi tomado de assalto pelos cruzados, imperadores e inquisidores do nosso tempo, sejam eles especuladores, corruptores ou administradores de dinheiros alheios.

Ao longo da sua História, a humanidade foi encontrando diversas fórmulas de organização mental, social e económica. Na verdade, no sentido antropológico do tema, não há uma humanidade mas diversíssimas humanidades que não podem, por isso, ser enquadradas num só sistema, para mais quando esse sistema ambiciona globalizar-se, como já aconteceu a várias religiões e aconteceu ao capitalismo. Os modelos são indissociáveis da respetiva ética e essa ética só se mantém enquanto a sua dimensão não fragiliza a coesão mental do grupo.

A crise do capitalismo a que assistimos hoje não é, assim, uma crise do capitalismo. Nada existe sem o seu espírito e este modelo a que hoje chamamos capitalista já nada tem do “espírito do capitalismo”. Faz tempo, portanto, que o capitalismo morreu. Morreu de elefantíase, como muitos antes dele. Este é o verdadeiro problema: falamos do cadáver como se o cadáver estivesse vivo. Mais: insistimos em mantê-lo ligado ao ventilador por horror ao vazio que pensamos que sentiríamos se o perdêssemos definitivamente.

Se estivermos conscientes disto, é, talvez, tempo de lhe desligarmos a máquina, de lhe darmos o eterno descanso que merece. Tempo para pensarmos em regressar à pequena dimensão, às múltiplas antropologias culturais, sociais, económicas e políticas. Tempo, enfim, de resistirmos às tentações centrípetas que sempre atacaram as sociedades humanas e pensarmos em globalizar a diferença que, essa sim, é fonte de coesão e de realização pessoal e social.