segunda-feira, 27 de abril de 2009

O homem cão.

Um escritório. Mais ou menos quinze pessoas no mesmo espaço: mais ou menos quinze em mais ou menos quinze secretárias. Estão separadas por separadores, as secretárias: muralhas. Dentro de cada separador-muralha todas têm os mesmos artefactos: um ecrã e um teclado e um rato. E também uma ou outra manifestação de pessoalidade: uma foto dum filho ou dum namorado ou uma recordação de algo: um esquiço autobiográfico que seja capaz de lhes catapultar a memória dali para fora.

Num dos cantos há uma câmara. Não é oculta, a câmara. Se fosse oculta não cumpriria a sua função: fazer com que as mais ou menos quinze pessoas que ali trabalham saibam que a câmara lá está: uma espécie de suplemento à avaliação com que no final do ano saberão do prémio a que têm direito.

Lá fora há um jardim. Está vazio. Vazio excepto pelo rapaz e pelo cão que nele brincam. O rapaz tem uma bola amarela e atira-a e o cão vai buscá-la e trá-la e devolve-a. E quando cão devolve a bola ao rapaz: o rapaz dá-lhe uma ordem e o cão senta-se e depois o rapaz dá-lhe outra ordem e o cão deita-se. E se o cão se deita e se senta mal o rapaz lhe ordena que se sente e se deite: o rapaz volta a atirar a bola e o cão volta a ir buscá-la e a trazê-la e a sentar-se e a deitar-se. Mas quando o cão não se senta e não se deita assim que o rapaz lhe ordena que se sente e se deite: o rapaz não lhe atira imediatamente a bola e obriga-o a ficar mais tempo sentado e deitado. E é assim que quando o cão é canino: o cão recebe imediatamente o seu prémio em bola atirada. E é assim que quando o cão é humano: o cão tem de sofrer mais tempo sentado e deitado antes que receba o seu prémio em bola atirada.

Começa a chover no jardim onde está o rapaz e onde está o cão. Voltemos ao escritório.
O escritório está na mesma: as mais ou menos quinze pessoas nas mais ou menos quinze secretárias. As mais ou menos quinze pessoas com os mais ou menos quinze computadores. As mais ou menos quinze pessoas com os mais ou menos quinze separadores-muralha. As mais ou menos quinze pessoas com a câmara que as grava. A câmara que gravando-as contribui para a sua avaliação. A avaliação que avaliando-os contribui para o estabelecimento do prémio que irão receber no final do ano ou talvez a promoção, até.

Numa das secretárias está um homem. O homem é gordo e tem uma barba rala e a camisa branca e a gravata desapertada assim como desapertado está o ultimo botão da camisa branca. O homem tecla no teclado e olha para o ecrã e tecla no teclado e olha para o ecrã. É um teclar domesticado assim como é um olhar domesticado: das teclas para o ecrã e do ecrã para as teclas e novamente das teclas para o ecrã e novamente do ecrã para as teclas. Os olhos estão avermelhados. Não é um vermelho nervoso: é um vermelho de desânimo. E é com esse olhar de desânimo avermelhado que de vez em quando quebra o ciclo ecrã-teclas-ecrã. Quebra-o com uma mirada ao maço de cigarros que tem pousado sobre a secretária.

E a câmara continua na sua função: grava.

E lá fora já parou a chuva e já está sol e o rapaz do cão já está novamente a atirar a bola ao cão e a esperar que ele lha traga e a mandá-lo sentar e a mandá-lo deitar.

O homem do olhar de desânimo. O homem do olhar desânimo levantou-se.

E a câmara a gravar.

Num dos cantos da sala há uma impressora e o homem do olhar de desânimo dirige-se para a impressora. Agora que está em pé e caminha vê-se que tudo no homem de olhar de desânimo coincide com o olhar de desânimo do homem de olhar de desânimo: a gravata desapertada e a camisa aberta no último botão e os ombros caídos e o andar lentamente apressado. Tudo. Tudo no homem de olhar de desânimo está de acordo com o desânimo do seu olhar.

A impressora: a impressora regurgitou duas folhas. E o homem de olhar de desânimo já chegou à impressora. E já pegou na regurgitação. E já viu que as folhas estão pretas. E já as amaçou. E já as atirou para o cesto dos papéis. Foi sem expressão no rosto que o fez, para além da expressão que já lhe conhecemos: a de desânimo. E agora o homem de olhar de desânimo já voltou à sua secretária. E sem se sentar dobrou-se sobre o teclado. E no teclado repetiu uma ordem anteriormente dada. E a impressora retornou à regurgitação. E o homem de olhar de desânimo retornou à impressora. E retornado que está: já verificou que estas também saíram pretas. E já as amaçou. E já as atirou para o cesto de papéis. E já voltou à secretária. E já se dobrou sobre o teclado. E já repetiu a ordem. E já tudo se repetiu e repetiu e repetiu.

A câmara: essa continua a gravar.

Lá fora: lá fora chove novamente. E novamente o cão e o rapaz do cão pararam com a brincadeira de atirar a bola e já se abrigaram.

O homem de olhar de desânimo não sabe que lá fora já choveu e que já parou de chover e que já chove de novo: não reparou. Em vez de perder tempo a reparar: o homem de olhar de desânimo resolveu alterar a estratégia e está parado em frente da impressora e abre-a: verifica se há algum problema com o recipiente da tinta. E talvez agora haja, se antes não havia já: o recipiente teve uma espécie de espirro e a camisa do homem de olhar de desânimo está agora manchada de preto. A camisa e a gravata e até a cara. É certo que homem de olhar de desânimo deu um salto para trás quando a impressora espirrou: um reflexo desnecessário: apanhou em cheio com a espirração.

Manchado de preto o homem de olhar de desânimo caminha uma vez mais para a secretária. Daquele ângulo a câmara só o grava de costas. E porque só o grava de costas: os olhos que estão por detrás daquele olho ficam sem saber: o olhar do homem de olhar de desânimo já não é um olhar de desânimo. Nada disso: o olhar do homem de olhar de desânimo é agora um olhar de desespero. Mas porque a câmara não vê o olhar de desespero do homem de olhar de desânimo: os olhos que estão por detrás da câmara não despoletam qualquer sinal de alerta.

Agora sim. Agora os olhos por detrás da câmara já podem ver a atitude desesperada do homem que é habitualmente o homem olhar de desânimo. Mas já é tarde de mais. Agora já não há função profilática no registo que a câmara faz: agora o registo já tem meramente a função de registar. Regista a atitude do homem que tinha olhar de desânimo.

Um gesto do braço direito e o homem que tinha olhar de desânimo varreu o tampo da secretária: teclado e maço de cigarros e uma lata de salsichas reciclada a dizer “Ao melhor pai do mundo” e que estava cheia de lápis e de canetas e de clipes: já está tudo no chão. E agora o homem que tinha olhar de desânimo encara o ecrã. Encara-o já sem a postura de desânimo: os ombros não estão encolhidos mas abertos e as costas já não estão curvadas mas direitas e o olhar já não é vermelho de desânimo mas vermelho de desespero. E as mãos: as mãos dirigem-se ao ecrã e puxam-no e ao puxá-lo arrancam-lhe os fios que umbilicalmente o ligavam à inteligência central.

E a câmara continua a gravar.

E lá fora não sabemos o que está a acontecer com o cão e o rapaz do cão. Não sabemos e nem queremos saber. Não agora: agora que o clímax é cá dentro.

Junto à impressora há outra máquina: uma fotocopiadora. E é para a fotocopiadora que o homem que tinha olhar de desânimo segue com o ecrã nas mãos. Se olhássemos para o olhar do homem que tinha olhar de desânimo e se depois olhássemos para o ecrã que o homem que tinha olhar de desânimo traz nas mãos: estranharíamos porque o monitor não sangra.

No escritório todos os colegas do homem que tinha olhar de desânimo se levantam. E olham para ele. E agora que o homem que tinha olhar de desânimo está junto à fotocopiadora: todos os que olham para o homem que tinha olhar de desânimo estão de frente para a câmara.

E a câmara continua a gravar.

E como a câmara continua a gravar: a câmara grava o olhar de todos os que olham para o homem que tinha olhar de desânimo. E nesse olhar que é agora de surpresa adivinha-se um olhar que era antes de desânimo: um desânimo fossilizado mesmo quando é momentaneamente substituído por surpresa.

O homem que tinha olhar de desânimo. O homem que tinha olhar de desânimo sente-se observado por aqueles mais ou menos vinte e oito olhos. Esses mais ou menos vinte e oito olhos que o olham com um momentâneo olhar de surpresa. E o homem que tinha olhar de desânimo volta-se para eles. E fita-os: o olhar de desespero do homem que tinha olhar de desânimo é agora olhar de raiva. E todos sentem a raiva daquele olhar. E todos regressam ao ar de desânimo. E todos se sentam. Sentam-se como se nada se passasse: atendem os telefones e teclam as teclas e miram os ecrãs. E o homem que tinha olhar de desânimo já perdeu o olhar de raiva e está a perder o olhar de desespero e está lentamente a voltar a para o olhar que lhe deu nome. Mas o desespero ainda é suficiente para que abra a tampa da fotocopiadora e lhe coloque o monitor ensanguentado em cima e para que carregue na tecla “Copiar”. É várias vezes que carrega nessa tecla: primeiro com um murro e depois com brusquidão e depois suavemente, duas vezes suavemente. E conforme passa do murro com que carregou para o suavemente com que está a carregar: o homem perde o olhar de raiva e passa para o olhar de desespero e finalmente regressa ao olhar que é o seu olhar: o olhar de desânimo.

O homem do olhar de desânimo olha à volta de si. Olha à volta de si como se olhasse para si: como se caísse em si. Os colegas continuam a trabalhar: viram-lhe o olhar de raiva e por isso trabalham como se nada se passasse. E o homem de olhar de desânimo já caiu em si: já dobrou a coluna e já encolheu os ombros e até já ajeitou a gravata. Agora levanta os olhos. Levanta-os para o canto onde a câmara grava tudo. O homem de olhar de desânimo sabe isso mesmo: sabe que a câmara grava tudo. Gravou-o antes assim como o grava agora: grava-o também agora que tem aquele olhar de desânimo e aquele ar ridículo com a camisa e a gravata e a cara manchados com o preto espirrado pela impressora. Ficou tudo registado: tudo.

O homem pega no monitor. Regressa ao seu lugar. Apanha os lápis que espalhara pelo chão. Mete-os dentro da lata de salsichas reciclada a dizer “Ao melhor pai do mundo”. Antes de pousar a lata sobre a secretária lê-a: um ténue sorriso. Apanha o teclado que também atirara para o chão. Pega nos fios do ecrã. Põe-se de joelhos: é de joelhos que tem de se pôr para se voltar a ligar à inteligência central. Senta-se. Um suspiro. Retoma o trabalho. O homem de olhar desanimado já retomou o trabalho.

A câmara. A câmara continua a sua função: grava. A câmara sabe que o homem de olhar de desânimo lá está. E o homem de olhar de desânimo sabe que a câmara lá está. E o homem trabalha: com afinco. E olha para a lata de salsichas a dizer “Ao melhor pai do mundo”. E continua a trabalhar com afinco. O homem de olhar de desânimo quer fazer tudo para que no final do ano a câmara se esqueça daquilo que a câmara acaba de gravar.

Lá fora. Lá fora voltou o sol. E o rapaz do cão continua a atirar a bola para que o cão a busque. Mas é só quando o cão se senta e se deita quando ele lhe diz que se sente e se deite. É só quando assim se comporta o cão que o rapaz do cão atira a bola para que o cão a busque.

E a câmara grava. E a câmara grava.
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Inspirado num vídeo que recebi:

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Inconsciência de "não ser"

Podemos recuar a mais do que Freud para tirar uma conclusão: há muito tempo que procuramos no inconsciente a fonte do mal-estar de cada ser humano. Será que o nosso problema é o que temos de inconsciente ou o que temos de consciente? Que conste, o que não tem consciência de ser, não tem também consciência de não ser. E já houve quem dissesse que a questão está aí: no conflito entre ser e não ser.
Talvez fosse altura de virarmos as ciências da psique de pernas para o ar: mudar o actor que faz o papel de vilão.