quinta-feira, 12 de março de 2009

Ainda a propósito da onda de censura

Nilson Barcelii do Blog Nimbypolis, que eu sigo com interesse e que faz o favor de me seguir, comentou o meu artigo “Já vi coisas piores começarem melhor” onde falo do estranho aparecimento duma onda de censura. Fi-lo a propósito de dois casos recentes que são sobejamente conhecidos: a apreensão do livro “Pornocracia” pela Polícia de Segurança Pública de Braga e a proibição seguida de desproibição do desfile do computador Magalhães no carnaval de Torres Vedras.

O comentário de Nilson foi o seguinte: “É lamentável, mas julgo não ser preocupante, já que não há nenhuma campanha de censura em curso...”

Talvez graças a este comentário fiquei mais atento ao tema. E já não me refiro ao caso português. No que toca a tendências temos de estar sempre mais atentos à famigerada globalização do que a casos nacionais. E globalmente os sinais não são assim tão desinquietantes.

Notícia 1: o jornalista paquistanês Syed Pervez Kambakhsh viu a sua condenação à morte comutada em vinte anos de prisão. Motivo: blasfémia. A blasfémia: debateu online o artigo duma iraniana residente na Europa. O tema do artigo: a falta de direitos da mulher afegã.

Um exotismo afegão, poderá dizer-se. Mas estamos a falar do mesmo Afeganistão cujo regime é suportado por tropas ocidentais, incluindo portuguesas. Chocou-me ainda a leveza do protesto da organização “Repórteres sem Fronteiras” que se limitou a um singelo pedido ao governo afegão para que altere a lei aplicada à basfémia, isto segundo o “Diário de Notícias” de hoje.

Notícia 2: Geórgia decidiu que já não vai à Eurovisão. A organização exigira que este país nomeasse um novo representante ou apresentasse uma nova canção. A canção: “We don’t wanna put in” dos Stephanie&3G. Um título interpretado (e bem) como sendo uma crítica ao primeiro-ministro russo, Vladimir Putin que, como é sabido, governa um país onde a liberdade de imprensa é cada vez mais aquilo que é. E desta vez nem sequer valeu aos interpretes a forma velada com que abordaram a questão. Os censores de Salazar podiam ser ignorantes e deixar passar Carlos Marques por Karl Marx. Os censores da Eurovisão não padecem da mesma ignorância “put in” é Putin.

E agora um artigo que é mais do que a cereja no topo do bolo: o artigo é de Neal Rosendorf e está publicado na “American Interest” de Março. O título: Popaganda. O subtítulo: What can Hollywood do for (and to) China. O tema: o governo de Pequim está muito triste porque não consegue produzir cinema capaz de promover o país. Uma tristeza que terá evoluído para depressão, após constatarem que Hollywood produziu mais um êxito de bilheteira com a história de animação Kung Fu Panda. Perante este êxito, as autoridades de Pequim questionavam-se sobre o porquê dos chineses não terem eles próprios sido capazes de produzir aquele aquele filme. Um filme que, afinal, é todo ele baseado na iconografia chinesa, a começar pelo próprio panda.

Preocupadas, as autoridades decidiram incumbir um comité de estudar o assunto e apresentar propostas. E o comité chegou a uma conclusão: Pequim deverá diminuir o controle sobre a industria cinematográfica, por forma a permitir uma maior liberdade criativa e, assim, ser capaz de produzir filmes que expandam pelo mundo os valores da cultura chinesa.

Não me vou pronunciar sobre a contradição entre o dirigismo patente no objectivo e a ideia de dar maior liberdade aos cineastas. Independentemente disso, é positivo que um regime fechado como o de Pequim comece a pensar duma forma que se pode resumir no seguinte aforismo: não há criatividade sem liberdade de expressão.

O que me indigna é que Neal Rosendorf, o citado autor do citado artigo, defenda o que aí defendeu.

O que defendeu Neal Rosendorf: que a China não conseguirá utilizar o cinema como máquina de propaganda a menos que incentive a implantação dum estúdio permanente de Hollywood em território chinês. E porquê? Primeiro porque Hollywood sabe fazê-lo melhor do que ninguém. E depois porque a propaganda feita por estrangeiros é mais credível do que a propaganda feita por chineses.

Sórdido é o exemplo que dá: o de Samuel Bronston que entre 1950 e 1964 teve apoio da ditadura de Franco para instalar um estúdio em Madrid. E Neal Rosendorf explica a vantagem: anteriormente o regime franquista tentara apoiar a produção nacional de grandes épicos de pendor nacionalista. Procurava com isso ultrapassar o isolamento internacional e promover os putativos valores espanhóis. Procurar procurava, mas sem êxito: fora de Espanha os filmes eram estrondosos fracassos.

A instalação dos estúdios de Samuel Bronston em Madrid alterou o panorama e grandes produções internacionais passaram a ser feitas em Espanha. Claro que, para isso, submetendo-se à censura do ditador, o que Rosendorf não oculta e, inclusive, dá como exemplo às autoridades chinesas sobre o que poderia ser feito.

Por fim o mais obscuro: Rosendorf alerta para que de forma alguma as autoridades chinesas deverão apoiar directamente este projecto, pois isso desacreditá-lo-ia e, assim, a propaganda não teria efeito. Mas Rosendorf vai lembrando que, se pelas mesma razões, Franco não apoiou directamente Samuel Bronston, arranjou formas indirectas de o fazer “with imaginative covert funding schemes that included oil and other products import licenses, which gave Bronston access to millions of dollars as an importation middle man.”

Já sabíamos que o Google aceita censurar o acesso a páginas incómodas ao regime para pesquisas feitas a partir da China. Agora sabemos que Hollywood está a preparar-se para se vender aos ditadores de Pequim como gigantesca máquina de propaganda e, em troca do respectivo apoio, aceitar as respectivas contrapartidas: em censura. E sabemo-lo porque, obviamente, um artigo como este tem um objectivo, uma origem e um destino.

Pior do que censura: vender a alma ao censor.

Valha-nos Spielberg que se recusou a organizar a cerimónia de arranque dos últimos Jogos Olímpicos devido à repressão no Tibete.

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